domingo, 7 de agosto de 2022

Dia 12 – 500km – De Cujanda para Dushanbe com um “pequeno” desvio para conhecer “um australiano” – Life is good

Ainda não são 11h da manhã e já o dia estava ganho, pensava eu para comigo após deixar aquele museu extraordinário.

Hoje o dia será longo, pois a viagem de Cujanda para Dushanbe é longa e por estradas onde muito raramente se conseguem velocidades mais elevadas, ora devido ao trânsito, ora devido ao estado da estrada, ora devido ao relevo.

Contudo, não quero deixar Cujanda sem conhecer o seu mercado local, o qual fica numa enorme praça com…adivinharam: uma mesquita e um minarete!

O mercado tem a parte na rua e a parte dentro do edifício, o qual tem uma entrada lindíssima. A azáfama é a normal neste tipo de mercados, com todos os aromas que também lhes são característicos. Fazem-se negócios e discutem-se preços. O edifício do mercado é da época soviética, como são muitos dos edifícios no Tajiquistão.

Estranhamente, não há moscas, mesmo nos talhos. Está uma temperatura propícia a moscas, quase trinta graus. Pergunto porque não há moscas, mas não me sabem responder. Lembro-me dos mercados de rua de Lima, onde as moscas eram parte do “cenário”, mas aqui este problema não se coloca. Ah, se quiserem comprar morangos estão a um preço tão baixo que até tenho vergonha de dizer...parece que é época de abundância dos mesmos!




Saio do mercado conseguindo não comprar nada (um feito!) e começamos então a viagem para Dushanbe já perto do meio-dia.

Deixamos a cidade e entramos na paisagem típica desta zona do Tajiquistão, inóspita e com povoações dispersas onde o burro é o meio de transporte mais comum. Por estarmos no início do degelo e as temperaturas ainda serem amenas, há uma cobertura verde na paisagem, que a torna um pouco menos inóspita ao primeiro olhar. Contudo, se imaginarmos a paisagem sem aquele verde temporário, percebemos a aridez do local.




Já me tinham perguntado se eu gostaria de conhecer um australiano que se diz viver aqui já há 20 anos. A questão? Ninguém parece saber exactamente onde é que ele vive!

Começamos a perguntar se alguém sabe o caminho para o australiano. Uns enviam-nos numa direcção, outros noutra. A quantidade de vezes que fizemos meia-volta perdi a conta. Sei que percorremos dezenas de quilómetros em estradas de pedra, falámos com imensas pessoas e, quando eu pensava que estávamos quase a chegar, não, ainda não estávamos. Não sei onde será o Tajiquistão profundo ou se sequer ele existe, mas se existe, arrisco-me a dizer que andámos por lá.

Conseguimos o número do seu capataz e falamos com ele. Diz que podemos ir (um pormenor que seria bom ter sabido antes do “pequeno” desvio) e que estará à nossa espera.

Olho para o relógio e passaram quase duas horas desde que decidimos fazer o pequeno desvio. Estamos perdidos…a que horas chegaremos a Dushanbe? Teremos de fazer parte da viagem de noite pelas montanhas, cenário que nenhum de nós vê com agrado. Mas agora, nada a fazer.

Finalmente chegamos à propriedade do australiano. Cá fora, uma mesa sumptuosa colocada à nossa espera. Somos recebidos pelo capataz, o qual nos diz para nos “sentarmos” à mesa. Confesso que não tive coragem de tirar foto naquele momento, perante a admiração e impacto de ver uma mesa daquelas “ali” colocada para nós. Chega o homem que se procurava, o qual sorri abertamente e diz: sentem-se, comam…já falamos!

A tradicional arte de bem receber viajantes que os visitam é algo tão natural nos Tajiques que chega a ser desconcertante. Devolvo o amplo sorriso, agradeço e começo a comer, pois já são quase 15h00 e o fantástico pequeno-almoço do hotel há muito que foi digerido e gasto.

Sobre a mesa três tipos de queijo que ele produz, uma massa com ovos e pão feito pelo trigo que ele cultiva. Tudo isto acompanhado de bebidas e acompanhamentos locais. Começa a falar dos tipos de queijo que temos na mesa, sobre o pão e desbloqueia assim a conversa. Pergunta como ouvimos falar dele e qual o objectivo da visita. Digo simplesmente que soube da sua existência e dos queijos que ele ali produzia e que fiquei curioso, pois mais do que um viajante, sou um colecionador de histórias. Ele sorri, como que incentivando a pergunta óbvia, à qual não me faço rogado. Como é que veio aqui parar, pergunto. O aqui nem era específico, mas ele percebeu.

Sorriu e disse-me: simples! Na Austrália está tudo feito, aqui é que ainda há muito por fazer. Começou por trabalhar na capital num programa de ajuda para famílias com crianças deficientes. O objectivo? Evitar que as famílias doassem essas crianças, pois elas são um fardo em famílias pobres. Como é que isso era feito? Arranjando maneira de que essas famílias tivessem uma cabra, a qual era cuidada pela criança deficiente, transformando assim essa criança numa mais-valia e não num fardo. Com o tempo percebeu que conseguiria fazer mais no interior do país do que na capital e mudou-se. Hoje em dia tem 200 cabras, produz o seu próprio mel, tem galinhas e diz-me que tenta ser o mais auto-suficiente e sustentável possível. A tarefa não é fácil, quando se decide viver no meio do nada!

Qual o seu contributo para os Tajiques hoje em dia? A sua valorização cultural e económica, diz-me. O leite de cabra vale pouco, pois aqui todos têm cabras, mas se transformarmos esse leite em queijo certificado e o vendermos para fora, aí cria-se uma mais-valia enorme. No fundo, o australiano é uma espécie de cooperativa e pólo de desenvolvimento rural, começo a perceber. As dificuldades de exportação? Imensas, diz-me. Ora fecha-se a fronteira com o Afeganistão por causa dos talibãs, depois fecha-se a fronteira com o Uzbequistão por causa de problemas políticos, fecha-se a fronteira com o Quirguistão por causa da Covid e agora tem um camião com material parado na fronteira polaca com a Bielorrússia por causa da guerra na Ucrânia. Efectivamente, ter um negócio sedeado aqui é de loucos, penso, pelo que auto-sustentabilidade é não só um desejo, como uma necessidade imperiosa.

Para além deste trabalho, ele tenta envolver-se com o povo Yagnob, povo que vive isolado no vale que dá origem ao nome da sua etnia (para ele dizer isolado, não imagino como seja). Acrescenta que já só restam algumas centenas de Yagnobs e que ele está a tentar fazer um registo da sua língua, pois muito vocabulário começa-se a perder e é uma língua sem registo escrito, que só sobrevive na oralidade, o que torna este trabalho de extrema importância.

A conversa torna-se um pouco mais pessoal, ele conta-me que tem 7 filhos da sua mulher australiana, a qual de momento está na Austrália com alguns deles. Dois estudam na Índia. Diz-me que uma vez conheceu outro português em Dushanbe, mas desde então nunca mais tinha visto nenhum. Pudera, penso…quantos portugueses passarão por aqui? Só um maluco à procura de outro, provavelmente.

Pergunta-me se quero conhecer a quinta, convite que agradeço.




No final da visita guiada, peço para tirar umas fotos com ele e pergunto como ele quer ser referido no blog: se pelo seu nome australiano, se pelo seu nome tajique, pois ele naturalizou-se e adoptou um nome na língua local. Pergunto ainda qual o seu último nome, o qual me tinha escapado durante toda a conversa.

Ele pensa, como se fosse a primeira vez que lhe tivessem perguntado tal e diz, sem nunca me dizer o seu último nome: coloque o nome tajique…depois pára e rectifica…não, não coloque nome algum. Os nomes não são importantes. Fale de mim somente como “um australiano” que por aqui vive.

Pergunto se ele gostaria de ficar com um contacto meu, ao que ele diz que não é necessário e que, se algum dia quisesse voltar a entrar em contacto com ele, que ligasse para o capataz como desta vez. E assim nos despedimos com um sorriso e desejo de boa sorte recíproco. Antes de sair, tiro uma foto àquela que tinha sido a mesa sumptuosa com que tinha sido recebido e penso para mim: que enorme honra e privilégio tive eu ao ser assim recebido por alguém tão único! Obrigado “australiano”, obrigado!

Passou quase uma hora, são praticamente 16h00 e a maioria do caminho está por fazer. A paisagem continua durante algumas horas na senda da anterior. Zonas rurais onde trabalhadores fazem trabalho manual em terrenos cuja fertilidade me espanta.



Duas horas se passam a chegamos à zona montanhosa, onde o sol anuncia a sua partida para breve. Escarpas, estradas serpenteantes, imensos camiões e paisagens impressionantes fazem-nos companhia até ao pór-do-sol.


De repente, o que é isto? Um tipo está pendurado em cabos eléctricos que percorrem toda a paisagem a colocar adereços para as festividades locais…surreal!

As estradas escavadas naquela paisagem de terra quase marciana criam paisagens que nunca me canso de admirar…e assim peço ao Alishir para parar uma e outra vez, para absorver toda a aquela ambiência pela última vez, pois este era o último dia de viagens por estes países extraordinários. O pôr-do-sol e o vento acompanham-me nesta despedida, sendo que o último fustiga o meu corpo cansado enquanto me tento equilibrar na berma da estrada na ânsia de tirar uma e outra última fotografia. Convido-vos a abrir cada uma das próximas fotos. Se fecharem os olhos, ouvirem o vento e cheirarem a terra, estarão aqui comigo!

Jantamos no restaurante onde tínhamos almoçado a caminho do Uzbequistão, para gáudio do Alishir que continua o jejum do Ramadão. Após a sua refeição, diz num tom visivelmente deleitado: “life is good”!

Pois é, meu caro Alishir, pois é…