quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Em memória de todos os que gritaram sozinhos


O cheiro é agoniante. Sinceramente já nem sei se ele está entranhado nas narinas, se na minha roupa ou se simplesmente no ar que teima em não perder o tom cinzento.




Continuamos a percorrer a estrada de negro ladeada. Acabámos de deixar um idoso que tinha tido a notícia de um cancro intestinal em Setembro. "Como ficámos sem electricidade fiquei sem bateria no telemóvel! Eu estou à espera a qualquer momento de um telefonema do hospital de Coimbra para ser operado. Disseram que era urgente a operação, mas eu não sei o pin do telemóvel!!!"




Afinal a carta para a cirurgia já tinha chegado, mas ele não tinha percebido o que era a carta. As árvores tombadas fazem-nos companhia. Não, estou errado. Não estão só tombadas: estão vergadas! Vergadas ao calor, ao vento, a um inferno que fez o metal gritar de dor ao contorcer-se também ele.





Parece que o outro senhor que nos tinham falado de manhã vive sozinho ao cima da ladeira que sobe do cemitério. Vamos para lá.




O fogo parou ao chegar ao cemitério! O senhor da Junta de Freguesia vem buscar uns colegas de trabalho algures na serra e dá-nos boleia no UMM. "O carro dele ardeu, mas ele anda por aí. Já o viram." A informação anterior batia certo...




 "Agora tem de descer por aquele caminho, depois vira para outro que vai encontrar e deve dar com o barraco." Obrigado, dizemos.





O caminho é ingreme e a cinza misturada com os ramos estendidos à nossa passagem não ajudam à descida.




Continuamos a caminhar. O barraco não se vislumbra, mas uma casa ardida no meio da encosta sim. Parece estar abandonada...toda a encosta está abandonada. Não se vislumbra um ser vivo.




E este cheiro que não nos larga! Agonia-nos sem nos tocar no estômago, sufoca-nos sem chegar aos pulmões...




Alguém o tinha visto depois do incêndio, mas não sabem se estará em "casa"!





Será aquilo que se vê ao longe? Alguém morará ali?




Se vive, não está. Não se vê vivalma. O fumo continua, ouvem-se bombas de água ao longe...são auto-tanques a abastecerem água do Alva. Vários...todos em fila! Isto nunca mais acaba...





Como viemos aqui parar? Ah, foi alguém no café onde tínhamos ido procurar outra pessoa que alegadamente tinha perdido a casa. Também não estava...tinha ido trabalhar. "Vai ser difícil que ele fale convosco. Ele não é de grandes falas. Pensava que tinha perdido o filho! Andou fugido do fogo no meio do monte...ainda não disse onde se escondeu!"





Esconder? Como é que alguém se esconde "disto"? Como nos escondemos da morte iminente? Do horror? Do medo? Como nos escondemos de um inferno na Terra?




"Não entrei em pânico! Sou socorrista. Foi o que me valeu. Fechei as persianas e as janelas todas e mandei todos para dentro!!!"




"Desculpe senhor doutor, desculpe!!!" As lágrimas escorrem-lhe pela face e agarra-se a mim com força!





"Eu preciso de gritar. Eles não me deixam, mas eu preciso de gritar!!!" E grita! Grita alto, grita muito, grita os seus horrores para fora dela, para que aquela serra a oiça a plenos pulmões!!! Grita no meu ombro e assim fica...






Um...dois...três...quatro...terão sido duzentos? Trezentos? Quantos segundos consegue alguém gritar e chorar ininterruptamente?






"Desculpe senhor doutor, desculpe!!! Vou deixá-lo todo sujo de cinza!"






"O fogo veio dali", diz o cunhado. "Veio uma chamusca para o outro lado e o meu irmão foi a correr com a mangueira comprida tentar apagar para que não subisse aos pinheiros."






Tinha dito que não precisava de apoio psicológico em frente à cunhada, mas assim que chegamos à parte de trás da casa desaba a chorar longe da vista de todos. "O meu irmão ainda conseguiu apagar aquela chamusca, mas de repente veio outra para cima do barraco das cabras e eu, com a mangueira pequena, não lhe cheguei"






"Morreram todas...e o meu irmão que gostava tanto delas!!! Morreu tudo: as cabras, as galinhas, os patos...tudo!!! Só tivemos tempo de ir para dentro de casa e rezar!"

T



"Até a tampa da panela ardeu...como é possível? E agora senhor doutor? Que vai ser de nós?"




Quatro meses depois oiço a mesma dor, cheiro o mesmo inferno, calco as mesmas cinzas. Castanheira de Pera persiste na minha memória! "Lutei sozinho contra o fogo: com as minhas mãos!" Quantas vezes mais ouvirei esta frase?




Gosto de pensar que todos daremos a volta a isto e que Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Góis, Ansião, Figueiró dos Vinhos, Oliveira do Hospital, Arganil, Pampilhosa da Serra, Tábua e tantos outros não se repetirão. Que não mais voltarei a ouvir estes gritos, gritos que persistem em acompanhar-me. Infelizmente sei que assim que voltar para o terreno estes gritos voltarão. Uns soltos a plenos pulmões, outros mudos. Cada um de nós tem os seus gritos!




Nem todos tiveram a sorte destes homens e destas mulheres que agora gritam os seus horrores. A eles dedico estes meus gritos em palavras escritos...

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Fadas e desejos

- Pai: existem mesmo fadas madrinhas? Queria tanto saber para lhes pedir desejos!!!

- É claro que existem fadas madrinhas filha. No mundo da fantasia pode existir tudo o que tu quiseres.

- Ai sim?

- Sim, mas no mundo da realidade os desejos funcionam de maneira diferente. Os desejos só se concretizam se trabalharmos e lutarmos por eles. Exemplo: o pai queria muito levar-te ao Sea Life no Porto, fazermos a viagem de avião para lá e voltarmos de Alfa como tu querias. Para isso tive de trabalhar muito, mas consegui. O meu desejo e o teu concretizaram-se, não foi?

- Foi pois!

- E tu querias um hamster no teu aniversário. O que é que o pai disse? Se te portasses bem na escola, trabalhasses e fizesses os trabalhos de casa sempre todos, que irias ter. E o que aconteceu?

- Eu fiz tudo e vou ter o hamster.

- Cá está, com trabalho e luta conseguirás sempre os teus desejos no mundo da realidade, mas acho muito bem que peças muitos desejos às fadas madrinhas no mundo da fantasia. É bom sonhar no mundo da fantasia :)

- Boa ideia pai. Vou fazer isso!





terça-feira, 14 de março de 2017

730 dias e parece que foi ontem...

Faz hoje dois anos que partiste e nos deixaste a todos mais pobres, mais tristes e em dor profunda.

Lembro-me de vir a conduzir do Algarve com uma pequena parte dos meus pertences no banco de trás após um exame teórico e vir a chorar em plena auto-estrada. Boa parte da A2 foi feita turva e, talvez também por isso, o Algarve não me deixou grandes saudades, pois era dele que partia para te acompanhar naquele processo por que ninguém merece passar de consultas após consultas, sessões de quimioterapia e angústia. Mas, acima de tudo, era para ele que voltava quando tinha de te deixar, nunca sabendo se te iria voltar a ver a sorrir para mim, se irias voltar a dar-me um beijo terno e se mais alguma vez te irias orgulhar das mais pequenas conquistas que fazia, pois todas elas eram fonte de felicidade para ti e isso dava-me, dá-me forças!

Fui reler as palavras que escrevi nas tuas exéquias e leio que iria ter saudades de rir contigo, que esperava ser suficientemente bom nesta vida para ganhar o direito de te visitar e que merecias toda a bondade que existisse no mundo, terreno ou não.

Estava errado, pois nunca deixei de rir contigo, de me lembrar de ti quando faço algo de bom e de partilhar em pensamento as minhas dúvidas e questões. Acima de tudo, dou por mim a perguntar-me muitas vezes o que dirias para me aconselhares. E o mais engraçado é que creio saber o que dirias. Se mais provas fossem necessárias da importância que tiveste na minha formação humana esta seria mais uma.

Vejo e revejo fotos tuas, mas nunca nenhuma fará jus à tua grandeza, à tua bondade, à tua capacidade de luta e à tua beleza interior.

A tua partida afinal não me deixou mais pobre. Continuas a enriquecer-me dia após dia, pois a cada passo que dou, levo-te pelo braço comigo, a cada decisão que tomo, penso-a contigo, e a cada beijo que dou na tua bisneta, dou-o contigo no coração.

Amo-te hoje e sempre minha querida Vó Tete!



Educação para o futuro ou casas de banho há muitas

- Pai: (ao passarmos em frente ao estádio do SCP) Como é que se chama o estádio do sporting?

- Casa de banho, filha, chama-se casa de banho.

- Casa de banho! Hahaha! Que engraçado pai! Porque é que se chama casa de banho?

Nestes momentos temos de ser ponderados e usar de mentiras piedosas para não ferir susceptibilidades. Dizer a uma criança de 6 anos que se chama casa de banho porque o futebol que lá se joga é uma grande caca poderia prejudicar a apetência pelo desporto e quero que a minha filha seja activa!

- É pelo seguinte filha: há muitos anos, na província, as pessoas tinham pouco dinheiro e quando faziam uma casa cobriam a casa de banho com o resto dos azulejos da cozinha, da sala e por aí fora. O sporting fez o mesmo: usou restos de azulejos de outras coisas em Lisboa para fazer o seu estádio. Daí ter tantas cores, era o que havia!


E sim, não lhe quis dizer que tinha sido coisa do Taveira, pois depois ela ia perguntar quem era o Taveira e já viram onde isto iria parar: de novo à caca!!!

- Aahhhhh. E porque é que o do Benfica se chama Catedral?

- Ora, porque, como nas catedrais, que são igrejas muito grandes, as pessoas vão lá para serem felizes e se sentirem bem. E, como ao estádio do Benfica vai muita gente para ser feliz, uma igreja não seria suficiente.  Daí chamar-se Catedral!

- Casa de banho...hahaha. Que giro!

Isto de ser pai não é fácil, mas alguém tem de assegurar o direito à educação das gerações vindouras!!!