O cheiro é agoniante. Sinceramente já nem sei se ele está entranhado nas narinas, se na minha roupa ou se simplesmente no ar que teima em não perder o tom cinzento.
Continuamos a percorrer a estrada de negro ladeada. Acabámos de deixar um idoso que tinha tido a notícia de um cancro intestinal em Setembro. "Como ficámos sem electricidade fiquei sem bateria no telemóvel! Eu estou à espera a qualquer momento de um telefonema do hospital de Coimbra para ser operado. Disseram que era urgente a operação, mas eu não sei o pin do telemóvel!!!"
Afinal a carta para a cirurgia já tinha chegado, mas ele não tinha percebido o que era a carta. As árvores tombadas fazem-nos companhia. Não, estou errado. Não estão só tombadas: estão vergadas! Vergadas ao calor, ao vento, a um inferno que fez o metal gritar de dor ao contorcer-se também ele.
Parece que o outro senhor que nos tinham falado de manhã vive sozinho ao cima da ladeira que sobe do cemitério. Vamos para lá.
O fogo parou ao chegar ao cemitério! O senhor da Junta de Freguesia vem buscar uns colegas de trabalho algures na serra e dá-nos boleia no UMM. "O carro dele ardeu, mas ele anda por aí. Já o viram." A informação anterior batia certo...
O caminho é ingreme e a cinza misturada com os ramos estendidos à nossa passagem não ajudam à descida.
Continuamos a caminhar. O barraco não se vislumbra, mas uma casa ardida no meio da encosta sim. Parece estar abandonada...toda a encosta está abandonada. Não se vislumbra um ser vivo.
E este cheiro que não nos larga! Agonia-nos sem nos tocar no estômago, sufoca-nos sem chegar aos pulmões...
Alguém o tinha visto depois do incêndio, mas não sabem se estará em "casa"!
Será aquilo que se vê ao longe? Alguém morará ali?
Se vive, não está. Não se vê vivalma. O fumo continua, ouvem-se bombas de água ao longe...são auto-tanques a abastecerem água do Alva. Vários...todos em fila! Isto nunca mais acaba...
Como viemos aqui parar? Ah, foi alguém no café onde tínhamos ido procurar outra pessoa que alegadamente tinha perdido a casa. Também não estava...tinha ido trabalhar. "Vai ser difícil que ele fale convosco. Ele não é de grandes falas. Pensava que tinha perdido o filho! Andou fugido do fogo no meio do monte...ainda não disse onde se escondeu!"
Esconder? Como é que alguém se esconde "disto"? Como nos escondemos da morte iminente? Do horror? Do medo? Como nos escondemos de um inferno na Terra?
"Não entrei em pânico! Sou socorrista. Foi o que me valeu. Fechei as persianas e as janelas todas e mandei todos para dentro!!!"
"Desculpe senhor doutor, desculpe!!!" As lágrimas escorrem-lhe pela face e agarra-se a mim com força!
"Eu preciso de gritar. Eles não me deixam, mas eu preciso de gritar!!!" E grita! Grita alto, grita muito, grita os seus horrores para fora dela, para que aquela serra a oiça a plenos pulmões!!! Grita no meu ombro e assim fica...
Um...dois...três...quatro...terão sido duzentos? Trezentos? Quantos segundos consegue alguém gritar e chorar ininterruptamente?
"Desculpe senhor doutor, desculpe!!! Vou deixá-lo todo sujo de cinza!"
"O fogo veio dali", diz o cunhado. "Veio uma chamusca para o outro lado e o meu irmão foi a correr com a mangueira comprida tentar apagar para que não subisse aos pinheiros."
Tinha dito que não precisava de apoio psicológico em frente à cunhada, mas assim que chegamos à parte de trás da casa desaba a chorar longe da vista de todos. "O meu irmão ainda conseguiu apagar aquela chamusca, mas de repente veio outra para cima do barraco das cabras e eu, com a mangueira pequena, não lhe cheguei"
"Morreram todas...e o meu irmão que gostava tanto delas!!! Morreu tudo: as cabras, as galinhas, os patos...tudo!!! Só tivemos tempo de ir para dentro de casa e rezar!"
T
"Até a tampa da panela ardeu...como é possível? E agora senhor doutor? Que vai ser de nós?"
Gosto de pensar que todos daremos a volta a isto e que Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Góis, Ansião, Figueiró dos Vinhos, Oliveira do Hospital, Arganil, Pampilhosa da Serra, Tábua e tantos outros não se repetirão. Que não mais voltarei a ouvir estes gritos, gritos que persistem em acompanhar-me. Infelizmente sei que assim que voltar para o terreno estes gritos voltarão. Uns soltos a plenos pulmões, outros mudos. Cada um de nós tem os seus gritos!
Nem todos tiveram a sorte destes homens e destas mulheres que agora gritam os seus horrores. A eles dedico estes meus gritos em palavras escritos...
Fiquei sem palavras Paulo Luís. Imagino o que tens presenciado, a dor, o desalento, o desespero de quem pouco tinha e agora nada tem. Custa a crer que se vivam estas histórias de horror em pleno séc. XXI e num País Europeu, no nosso País.
ResponderEliminarPois. Não há palavras que exponham a realidade. Eu tentei, mas é só um pequeno relato...nada mais!
EliminarObrigada, Paulo. Não podemos esquecer. Nunca.
ResponderEliminarObrigada pela partilha Paulo. Estamos no Porto em plena avenida dos Aliados, onde se previa uma concentração silenciosa em memória das vítimas, das 16h às 20h mas pelas 18h45, quando aqui chegámos, já cá não estava ninguem. Mesmo assim, decidimos fazer o nosso momento de silêncio e ler o teu texto em voz alta. Uma vez mais obrigada pela partilha da tua experiência em primeira mão. Beijo meu e abraço do meu Espírito.
ResponderEliminarThere are no words 😔.
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