sábado, 6 de junho de 2020

Decisões que custam e salvam vidas



A actividade não urgente nos hospitais de Lisboa voltou hoje a ser suspensa pelo decisor. Qualquer decisor sabe bem que, quando se toma uma decisão deste género, isto custará qualidade de vida aos doentes que esperam por cirurgias, consultas e tratamentos, sem contar com os que verão doenças anteriormente com melhor prognóstico a deteriorarem para doenças com prognóstico menos favorável, como é o caso dos doentes oncológicos.

Por isso, a pergunta que se coloca é a seguinte: por que toma um decisor esta decisão? A resposta é, por incoerente que pareça - para salvar vidas.

Perante o aumento do número de casos de Covid-19 na área metropolitana de Lisboa, e com a perspectiva a curto prazo de a assistência a estes casos requerer todo o manancial humano e técnico disponível, ao decisor cabe escolher o menos mau de dois cenários.

Feitas as contas, que depreendo que tenham sido feitas, o decisor concluiu que mesmo que usando a capacidade de resposta de regiões adjacentes à área metropolitana de Lisboa, tal não será suficiente para dar resposta ao que poderá estar para vir e tomou esta decisão.

Contudo, para além da não reabertura, por enquanto, das grandes superfícies comerciais, apesar do espectro de falência sobre algumas empresas da área, não foi revertida nenhuma medida do desconfinamento.

Encerram-se a actividade não urgente dos hospitais de Lisboa, mas a montante do problema, continua a poder-se ir à praia, a viajar em aviões cheios, a usar transportes públicos para além de cheios, etc, etc. E por quê? Porque o decisor já percebeu que, caso a economia não comece a funcionar, isso custará igualmente vidas.

Uma coisa foi parar o país para evitar a hecatombe humanitária e económica de Itália e Espanha, dando-nos tempo para aumentarmos a capacidade de resposta do país para a pandemia. Sobre o porquê de sermos anteriormente o país com menos camas de cuidados intensivos da Europa dita Ocidental e agora ser preciso comprar tudo a correr, não me irei pronunciar. Cada um tirará as suas conclusões. Outra coisa será manter o país fechado por mais tempo, o que creio que todos já percebemos será muito difícil de fazer.

Perante o actual cenário de termos uma área metropolitana de Lisboa com bairros que toda a gente fingiu não saber que existiam, habitados por populações que ganham “à jorna” como há um século atrás, com uma elevada densidade populacional e que não permite isolamento de qualquer tipo (com ou sem portas de cafés soldadas como no bairro da Jamaica), a perspectiva não é animadora. E sim, este tema sobre o desinvestimento no interior do país que levou a esta concentração populacional nas zonas em questão (aqui, poderia debater-se a questão do novo aeroporto do Montijo vs uma linha ferroviária de alta velocidade, que potenciasse o aeroporto de Beja e o Baixo Alentejo, em geral, por exemplo) daria pano para mangas.

Contudo, este é o cenário actual que os decisores têm pela frente:

- Vive muita gente pobre (sabendo-se que a pobreza é factor de risco para qualquer doença, não sendo a Covid-19 excepção) na área metropolitana de Lisboa;

- Esta gente precisa de alimentar as famílias e precisa de rendimentos;

- Não há como deslocar repentinamente estas pessoas para um interior desertificado e sem capacidade de providenciar trabalho, de modo a corrigir a assimetria de densidade populacional;

- Sem o turismo (restaurantes, lojas, hóteis) a funcionar minimamente (nem que seja o interno), a economia afundar-se-á ainda mais e o estado não terá meios financeiros (15,5 mil milhões de euros chegarão se forem simplesmente usados a médio/longo prazo para sustentar uma economia parada?) para evitar a perda de mais vidas por algo que, por vezes, esquecemos ser muito comum noutras paragens, e que dá pelo nome de fome;

- O Serviço Nacional de Saúde (SNS) não consegue (nem o nosso, nem nenhum outro) prestar o serviço não urgente ao mesmo tempo que lida com um surto da pandemia (será que se requisitasse a capacidade privada continuaria a não conseguir?);

- Uma franja da população, os mais jovens principalmente, continuam a ter comportamentos não adequados, não praticando distanciamento social ou usando máscaras em locais públicos;

- Somos uma sociedade com um índice de envelhecimento muito elevado, o que potencia os danos da Covid-19.

Perante estes pontos, e mais haveriam para colocar, qualquer decisão custará vidas, já se percebeu.

Recuar no confinamento custará vidas, fechar a actividade não urgente hospitalar custará vidas, deixar a economia funcionar livremente custará vidas…qualquer caminho custará vidas.

E isto acontece porque Portugal, décadas a fio, se colocou a jeito: com uma economia altamente dependente de actividades não primárias (quem não se lembra do sucesso que era no Cavaquismo abater traineiras e comprar jipes com os subsídios da UE para esse abate, pois iríamos ser finalmente um país moderno?); com uma população envelhecida, para a qual contribuiu a ausência completa de reais apoios à natalidade, e com um desinvestimento gradual no SNS, desinvestimento esse em capacidade física (aguardam-se vários hospitais novos há décadas), técnico (material obsoleto em muito do SNS) e humano (carreiras médicas e de enfermagem congeladas, ausência de aumentos de vencimentos há anos, etc).

É tudo mau? 

Não, continuamos a ter um SNS (leia-se profissionais de saúde) que, apesar de esfaqueado em várias áreas vitais, continua a lutar, a ser resiliente e a dar o seu melhor. Mas não chega para tudo, como se pode ver com a decisão de hoje. 

Continuamos a ser um povo solidário, capaz, inteligente e resiliente.

Resta esperar que todos nós sejamos capazes de perceber que esta guerra está longe de estar terminada, que dependerá muito de nós minimizarmos comportamentos de risco, que depende de cada um de nós agir e dar o exemplo, com o “simples” objectivo de que o menor número de nós faleça…perdão, morra. 

Sobre os decisores cai, perdoem-me o pleonasmo, o ónus desta decisão: a decisão que venha a custar menos vidas. Espero que acertem. 

Paulo dos Santos Luís – Médico interno de Saúde Pública (ACeS Pinhal Interior Norte), Mestrando em Saúde Pública na Escola Nacional de Saúde Pública

quarta-feira, 27 de maio de 2020

A Dona A.




Há dias assim. Dias em que não somos capazes de nos sentirmos felizes com o que corre bem. 

Hoje a Dona A. faleceu. Não a conhecia, nunca falei com ela, não sei se era alta ou baixa, gorda ou magra e até há cinco dias nem sabia que existia, confesso.

Lamento que todos os nossos esforços não lhe tenham permitido sobreviver, que todos os cuidados que temos há meses para minimizarmos os riscos de contágio no concelho de Oliveira do Hospital não tenham chegado para evitar que se contagiasse e que em menos de uma semana partisse.

Durante estes cinco dias várias pessoas estiveram sob nosso acompanhamento (não gosto da palavra técnica vigilância, confesso...sou médico, não vigilante). Destas pessoas acompanhadas, a maioria estava bem, algumas tinham sintomas ligeiros e outras recuperaram completamente e foram dadas como curadas.

Por cada pessoa recuperada há uma pequena vitória e, de pequena vitória em pequena vitória, vamos esperando que os dias sejam feitos somente destas pequenas vitórias. Esquecemo-nos que existe outro desfecho possível que surge abruptamente com um telefonema.

O Sr. N., ao despedir-se hoje de mim, na sequência do acompanhamento que fiz da sua situação, da situação da sua mulher e da situação do seu filho, disse-me:

- Quero agradecer-lhe a atenção e o cuidado. Ouve-se que foi montado todo um sistema para a Covid-19, mas só quando passamos por isto é que percebemos o que isso implica. Por isso, em meu nome e da minha família, agradeço a si e aos seus colegas terem tomado conta de nós durante este período.

Sempre que alguém nos agradece o trabalho que fazemos, respondemos que estamos cá para isso, mas hoje, depois da partida da Dona A., estas palavras tocaram mais fundo, tocaram num sítio onde outras igualmente sentidas por quem as tinha proferido não tinham tocado.

A Dona A. não teve a oportunidade de dizê-las,  nem teve a oportunidade de se despedir dos seus...não teve, simplesmente, oportunidade.

Hoje o dia acaba triste, mas quero dizer-lhe Dona A.: a sua partida reforça a determinação e a vontade que vivem em nós para que as pequenas vitórias continuem dia após dia, semana após semana...para que todos tenham oportunidades de se despedirem, não dos seus, mas de nós. Estaremos cá, não para ouvirmos os agradecimentos, mas pelo que eles significam: que aqueles de quem cuidamos continuam a ter oportunidades.

Até um dia Dona A. Não me esquecerei de si…