quarta-feira, 27 de maio de 2020

A Dona A.




Há dias assim. Dias em que não somos capazes de nos sentirmos felizes com o que corre bem. 

Hoje a Dona A. faleceu. Não a conhecia, nunca falei com ela, não sei se era alta ou baixa, gorda ou magra e até há cinco dias nem sabia que existia, confesso.

Lamento que todos os nossos esforços não lhe tenham permitido sobreviver, que todos os cuidados que temos há meses para minimizarmos os riscos de contágio no concelho de Oliveira do Hospital não tenham chegado para evitar que se contagiasse e que em menos de uma semana partisse.

Durante estes cinco dias várias pessoas estiveram sob nosso acompanhamento (não gosto da palavra técnica vigilância, confesso...sou médico, não vigilante). Destas pessoas acompanhadas, a maioria estava bem, algumas tinham sintomas ligeiros e outras recuperaram completamente e foram dadas como curadas.

Por cada pessoa recuperada há uma pequena vitória e, de pequena vitória em pequena vitória, vamos esperando que os dias sejam feitos somente destas pequenas vitórias. Esquecemo-nos que existe outro desfecho possível que surge abruptamente com um telefonema.

O Sr. N., ao despedir-se hoje de mim, na sequência do acompanhamento que fiz da sua situação, da situação da sua mulher e da situação do seu filho, disse-me:

- Quero agradecer-lhe a atenção e o cuidado. Ouve-se que foi montado todo um sistema para a Covid-19, mas só quando passamos por isto é que percebemos o que isso implica. Por isso, em meu nome e da minha família, agradeço a si e aos seus colegas terem tomado conta de nós durante este período.

Sempre que alguém nos agradece o trabalho que fazemos, respondemos que estamos cá para isso, mas hoje, depois da partida da Dona A., estas palavras tocaram mais fundo, tocaram num sítio onde outras igualmente sentidas por quem as tinha proferido não tinham tocado.

A Dona A. não teve a oportunidade de dizê-las,  nem teve a oportunidade de se despedir dos seus...não teve, simplesmente, oportunidade.

Hoje o dia acaba triste, mas quero dizer-lhe Dona A.: a sua partida reforça a determinação e a vontade que vivem em nós para que as pequenas vitórias continuem dia após dia, semana após semana...para que todos tenham oportunidades de se despedirem, não dos seus, mas de nós. Estaremos cá, não para ouvirmos os agradecimentos, mas pelo que eles significam: que aqueles de quem cuidamos continuam a ter oportunidades.

Até um dia Dona A. Não me esquecerei de si…