Ainda não são
11h da manhã e já o dia estava ganho, pensava eu para comigo após deixar aquele
museu extraordinário.
Hoje o dia será
longo, pois a viagem de Cujanda para Dushanbe é longa e por estradas onde muito
raramente se conseguem velocidades mais elevadas, ora devido ao trânsito, ora
devido ao estado da estrada, ora devido ao relevo.
Contudo, não
quero deixar Cujanda sem conhecer o seu mercado local, o qual fica numa enorme
praça com…adivinharam: uma mesquita e um minarete!
O mercado tem a
parte na rua e a parte dentro do edifício, o qual tem uma entrada lindíssima. A
azáfama é a normal neste tipo de mercados, com todos os aromas que também lhes
são característicos. Fazem-se negócios e discutem-se preços. O edifício do
mercado é da época soviética, como são muitos dos edifícios no Tajiquistão.
Estranhamente,
não há moscas, mesmo nos talhos. Está uma temperatura propícia a moscas, quase
trinta graus. Pergunto porque não há moscas, mas não me sabem responder.
Lembro-me dos mercados de rua de Lima, onde as moscas eram parte do “cenário”,
mas aqui este problema não se coloca. Ah, se quiserem comprar morangos estão a
um preço tão baixo que até tenho vergonha de dizer...parece que é época de
abundância dos mesmos!
Saio do mercado conseguindo
não comprar nada (um feito!) e começamos então a viagem para Dushanbe já perto
do meio-dia.
Deixamos a
cidade e entramos na paisagem típica desta zona do Tajiquistão, inóspita e com
povoações dispersas onde o burro é o meio de transporte mais comum. Por
estarmos no início do degelo e as temperaturas ainda serem amenas, há uma
cobertura verde na paisagem, que a torna um pouco menos inóspita ao primeiro
olhar. Contudo, se imaginarmos a paisagem sem aquele verde temporário,
percebemos a aridez do local.
Já me tinham
perguntado se eu gostaria de conhecer um australiano que se diz viver aqui já
há 20 anos. A questão? Ninguém parece saber exactamente onde é que ele vive!
Começamos a
perguntar se alguém sabe o caminho para o australiano. Uns enviam-nos numa
direcção, outros noutra. A quantidade de vezes que fizemos meia-volta perdi a conta.
Sei que percorremos dezenas de quilómetros em estradas de pedra, falámos com
imensas pessoas e, quando eu pensava que estávamos quase a chegar, não, ainda
não estávamos. Não sei onde será o Tajiquistão profundo ou se sequer ele
existe, mas se existe, arrisco-me a dizer que andámos por lá.
Conseguimos o
número do seu capataz e falamos com ele. Diz que podemos ir (um pormenor que
seria bom ter sabido antes do “pequeno” desvio) e que estará à nossa espera.
Olho para o
relógio e passaram quase duas horas desde que decidimos fazer o pequeno desvio.
Estamos perdidos…a que horas chegaremos a Dushanbe? Teremos de fazer parte da
viagem de noite pelas montanhas, cenário que nenhum de nós vê com agrado. Mas
agora, nada a fazer.
Finalmente
chegamos à propriedade do australiano. Cá fora, uma mesa sumptuosa colocada à
nossa espera. Somos recebidos pelo capataz, o qual nos diz para nos “sentarmos”
à mesa. Confesso que não tive coragem de tirar foto naquele momento, perante a
admiração e impacto de ver uma mesa daquelas “ali” colocada para nós. Chega o
homem que se procurava, o qual sorri abertamente e diz: sentem-se, comam…já falamos!
A tradicional
arte de bem receber viajantes que os visitam é algo tão natural nos Tajiques
que chega a ser desconcertante. Devolvo o amplo sorriso, agradeço e começo a
comer, pois já são quase 15h00 e o fantástico pequeno-almoço do hotel há muito
que foi digerido e gasto.
Sobre a mesa
três tipos de queijo que ele produz, uma massa com ovos e pão feito pelo trigo
que ele cultiva. Tudo isto acompanhado de bebidas e acompanhamentos locais.
Começa a falar dos tipos de queijo que temos na mesa, sobre o pão e desbloqueia
assim a conversa. Pergunta como ouvimos falar dele e qual o objectivo da
visita. Digo simplesmente que soube da sua existência e dos queijos que ele
ali produzia e que fiquei curioso, pois mais do que um viajante, sou um colecionador
de histórias. Ele sorri, como que incentivando a pergunta óbvia, à qual não me
faço rogado. Como é que veio aqui parar, pergunto. O aqui nem era específico,
mas ele percebeu.
Sorriu e
disse-me: simples! Na Austrália está tudo feito, aqui é que ainda há muito por
fazer. Começou por trabalhar na capital num programa de ajuda para famílias com
crianças deficientes. O objectivo? Evitar que as famílias doassem essas
crianças, pois elas são um fardo em famílias pobres. Como é que isso era feito?
Arranjando maneira de que essas famílias tivessem uma cabra, a qual era cuidada
pela criança deficiente, transformando assim essa criança numa mais-valia e não
num fardo. Com o tempo percebeu que conseguiria fazer mais no interior do país
do que na capital e mudou-se. Hoje em dia tem 200 cabras, produz o seu próprio
mel, tem galinhas e diz-me que tenta ser o mais auto-suficiente e sustentável
possível. A tarefa não é fácil, quando se decide viver no meio do nada!
Qual o seu
contributo para os Tajiques hoje em dia? A sua valorização cultural e
económica, diz-me. O leite de cabra vale pouco, pois aqui todos têm cabras, mas
se transformarmos esse leite em queijo certificado e o vendermos para fora, aí
cria-se uma mais-valia enorme. No fundo, o australiano é uma espécie de
cooperativa e pólo de desenvolvimento rural, começo a perceber. As dificuldades
de exportação? Imensas, diz-me. Ora fecha-se a fronteira com o Afeganistão por
causa dos talibãs, depois fecha-se a fronteira com o Uzbequistão por causa de
problemas políticos, fecha-se a fronteira com o Quirguistão por causa da Covid
e agora tem um camião com material parado na fronteira polaca com a Bielorrússia
por causa da guerra na Ucrânia. Efectivamente, ter um negócio sedeado aqui é de
loucos, penso, pelo que auto-sustentabilidade é não só um desejo, como uma
necessidade imperiosa.
Para além deste
trabalho, ele tenta envolver-se com o povo Yagnob, povo que vive isolado no
vale que dá origem ao nome da sua etnia (para ele dizer isolado, não imagino
como seja). Acrescenta que já só restam algumas centenas de Yagnobs e que ele
está a tentar fazer um registo da sua língua, pois muito vocabulário começa-se
a perder e é uma língua sem registo escrito, que só sobrevive na oralidade, o
que torna este trabalho de extrema importância.
A conversa
torna-se um pouco mais pessoal, ele conta-me que tem 7 filhos da sua mulher
australiana, a qual de momento está na Austrália com alguns deles. Dois estudam
na Índia. Diz-me que uma vez conheceu outro português em Dushanbe, mas desde
então nunca mais tinha visto nenhum. Pudera, penso…quantos portugueses passarão
por aqui? Só um maluco à procura de outro, provavelmente.
Pergunta-me se
quero conhecer a quinta, convite que agradeço.
No final da
visita guiada, peço para tirar umas fotos com ele e pergunto como ele quer ser
referido no blog: se pelo seu nome australiano, se pelo seu nome tajique, pois
ele naturalizou-se e adoptou um nome na língua local. Pergunto ainda qual o seu
último nome, o qual me tinha escapado durante toda a conversa.
Ele pensa, como
se fosse a primeira vez que lhe tivessem perguntado tal e diz, sem nunca me
dizer o seu último nome: coloque o nome tajique…depois pára e rectifica…não,
não coloque nome algum. Os nomes não são importantes. Fale de mim somente como “um
australiano” que por aqui vive.
Pergunto se ele
gostaria de ficar com um contacto meu, ao que ele diz que não é necessário e
que, se algum dia quisesse voltar a entrar em contacto com ele, que ligasse
para o capataz como desta vez. E assim nos despedimos com um sorriso e desejo
de boa sorte recíproco. Antes de sair, tiro uma foto àquela que tinha sido a
mesa sumptuosa com que tinha sido recebido e penso para mim: que enorme honra e
privilégio tive eu ao ser assim recebido por alguém tão único! Obrigado “australiano”,
obrigado!
Passou quase uma
hora, são praticamente 16h00 e a maioria do caminho está por fazer. A paisagem
continua durante algumas horas na senda da anterior. Zonas rurais onde
trabalhadores fazem trabalho manual em terrenos cuja fertilidade me espanta.
Duas horas se
passam a chegamos à zona montanhosa, onde o sol anuncia a sua partida para breve.
Escarpas, estradas serpenteantes, imensos camiões e paisagens impressionantes
fazem-nos companhia até ao pór-do-sol.
De repente, o
que é isto? Um tipo está pendurado em cabos eléctricos que percorrem toda a
paisagem a colocar adereços para as festividades locais…surreal!
As estradas
escavadas naquela paisagem de terra quase marciana criam paisagens que nunca me
canso de admirar…e assim peço ao Alishir para parar uma e outra vez, para
absorver toda a aquela ambiência pela última vez, pois este era o último dia de
viagens por estes países extraordinários. O pôr-do-sol e o vento acompanham-me
nesta despedida, sendo que o último fustiga o meu corpo cansado enquanto me
tento equilibrar na berma da estrada na ânsia de tirar uma e outra última
fotografia. Convido-vos a abrir cada uma das próximas fotos. Se fecharem os
olhos, ouvirem o vento e cheirarem a terra, estarão aqui comigo!
Jantamos no
restaurante onde tínhamos almoçado a caminho do Uzbequistão, para gáudio do
Alishir que continua o jejum do Ramadão. Após a sua refeição, diz num tom
visivelmente deleitado: “life is good”!
Pois é, meu caro
Alishir, pois é…