domingo, 18 de setembro de 2022

Dia 13 - Gratidão imensa a todos com que me cruzei. Rahmat, meus amigos...até um dia!


Ter adormecido tarde na véspera depois da aventura do australiano foi um preço alto a pagar, pois terei de acordar à 01h30 do dia seguinte para apanhar o vôo de regresso a Istambul.

Hoje o dia é passado a tratar de coisas práticas como ir à Turkish Airlines verificar o estado do meu pedido de indemnização pelo facto de terem partido a minha mala na viagem de ida. Chegado à Turkish Airlines, descubro que a mala tinha sido colada pelo “melhor reparador de malas de Istambul”, algo que o funcionário da Turkish demonstrava com orgulho. 


Perante a incredulidade da coisa, surge uma informação extremamente útil e que me faz tirar o foco da questão da “reparação da mala”.

- Já fez o teste Covid, pergunta-me.

- Não, digo eu. Não precisamos de teste para entrar em Portugal.

- Pode ser que não, mas precisa para sair do Tajiquistão.

Aparentemente, e em lado algum essa informação constava, é preciso ter um teste negativo para se sair do país!

E eis como uma mala partida se mostra salvadora. Sem esta informação dada pelo funcionário da Turkish Airlines, teria chegado às três da manhã ao aeroporto sem teste e perderia o voo. Relembrar que a Turkish só voa para Dushanbe de Istambul duas vezes por semana, pelo que isso teria implicado três dias mais no Tajiquistão. Não que me importasse, mas o patronato não ficaria muito agradado!

Felizmente havia um laboratório bem perto, pelo que uma zaragatoa depois estava despachado.

Durante o último dia deambulo pela cidade e tento absorver o máximo possível da atmosfera da capital, tentando não ficar demasiado nostálgico pela partida se aproximar.

Durmo pouco, o táxi chega, leva-me ao aeroporto e aí tenho o meu último “Portugal? Ah, Cristiano Rounaldo!” no controlo de passaporte. Não seria a mesma coisa sem o CR7!

O vôo parte às 05h25 e decorre sem intercorrências de maior.

Na minha mente voam as mil e uma experiências vividas, os milhares de km percorridos, as montanhas, os vales, os rios, os fantásticos monumentos, mas acima de tudo as pessoas: a imensa gentileza de todos com quem me cruzei.

Ao Acmal, ao Lochin, à Guljon, à Elina, ao australiano, ao CR7 que tantas portas me abriu e ao fantástico Alishir que me conduziu por milhares de km, sempre disponível para parar para mais uma foto, só tenho a agradecer. Sem vós, esta viagem teria sido completamente diferente e eu não teria ficado o homem que fiquei após a ter completado.

Finalmente, ao Sr. Sadullo e à Zarina. O Sr. Sadullo é um homem extraordinário, o qual fundou esta empresa de turismo há trinta anos pouco após o colapso da URSS. Claramente um homem de visão, ao qual agradeço a amabilidade e cortesia para comigo. A Zarina, sua filha e co-gestora da empresa, foi de uma disponibilidade e carinho imensos, tendo sido a alma deste projecto. Incansável no sentido de me permitir descobrir a sua cultura e as suas gentes, a ela devo esta aventura imensa nos moldes em que ela ocorreu.

Gratidão é a única palavra que me ocorre para descrever o meu estado de espírito no final desta viagem e com ela me despeço.

Rahmat, meus amigos...até um dia!



domingo, 7 de agosto de 2022

Dia 12 – 500km – De Cujanda para Dushanbe com um “pequeno” desvio para conhecer “um australiano” – Life is good

Ainda não são 11h da manhã e já o dia estava ganho, pensava eu para comigo após deixar aquele museu extraordinário.

Hoje o dia será longo, pois a viagem de Cujanda para Dushanbe é longa e por estradas onde muito raramente se conseguem velocidades mais elevadas, ora devido ao trânsito, ora devido ao estado da estrada, ora devido ao relevo.

Contudo, não quero deixar Cujanda sem conhecer o seu mercado local, o qual fica numa enorme praça com…adivinharam: uma mesquita e um minarete!

O mercado tem a parte na rua e a parte dentro do edifício, o qual tem uma entrada lindíssima. A azáfama é a normal neste tipo de mercados, com todos os aromas que também lhes são característicos. Fazem-se negócios e discutem-se preços. O edifício do mercado é da época soviética, como são muitos dos edifícios no Tajiquistão.

Estranhamente, não há moscas, mesmo nos talhos. Está uma temperatura propícia a moscas, quase trinta graus. Pergunto porque não há moscas, mas não me sabem responder. Lembro-me dos mercados de rua de Lima, onde as moscas eram parte do “cenário”, mas aqui este problema não se coloca. Ah, se quiserem comprar morangos estão a um preço tão baixo que até tenho vergonha de dizer...parece que é época de abundância dos mesmos!




Saio do mercado conseguindo não comprar nada (um feito!) e começamos então a viagem para Dushanbe já perto do meio-dia.

Deixamos a cidade e entramos na paisagem típica desta zona do Tajiquistão, inóspita e com povoações dispersas onde o burro é o meio de transporte mais comum. Por estarmos no início do degelo e as temperaturas ainda serem amenas, há uma cobertura verde na paisagem, que a torna um pouco menos inóspita ao primeiro olhar. Contudo, se imaginarmos a paisagem sem aquele verde temporário, percebemos a aridez do local.




Já me tinham perguntado se eu gostaria de conhecer um australiano que se diz viver aqui já há 20 anos. A questão? Ninguém parece saber exactamente onde é que ele vive!

Começamos a perguntar se alguém sabe o caminho para o australiano. Uns enviam-nos numa direcção, outros noutra. A quantidade de vezes que fizemos meia-volta perdi a conta. Sei que percorremos dezenas de quilómetros em estradas de pedra, falámos com imensas pessoas e, quando eu pensava que estávamos quase a chegar, não, ainda não estávamos. Não sei onde será o Tajiquistão profundo ou se sequer ele existe, mas se existe, arrisco-me a dizer que andámos por lá.

Conseguimos o número do seu capataz e falamos com ele. Diz que podemos ir (um pormenor que seria bom ter sabido antes do “pequeno” desvio) e que estará à nossa espera.

Olho para o relógio e passaram quase duas horas desde que decidimos fazer o pequeno desvio. Estamos perdidos…a que horas chegaremos a Dushanbe? Teremos de fazer parte da viagem de noite pelas montanhas, cenário que nenhum de nós vê com agrado. Mas agora, nada a fazer.

Finalmente chegamos à propriedade do australiano. Cá fora, uma mesa sumptuosa colocada à nossa espera. Somos recebidos pelo capataz, o qual nos diz para nos “sentarmos” à mesa. Confesso que não tive coragem de tirar foto naquele momento, perante a admiração e impacto de ver uma mesa daquelas “ali” colocada para nós. Chega o homem que se procurava, o qual sorri abertamente e diz: sentem-se, comam…já falamos!

A tradicional arte de bem receber viajantes que os visitam é algo tão natural nos Tajiques que chega a ser desconcertante. Devolvo o amplo sorriso, agradeço e começo a comer, pois já são quase 15h00 e o fantástico pequeno-almoço do hotel há muito que foi digerido e gasto.

Sobre a mesa três tipos de queijo que ele produz, uma massa com ovos e pão feito pelo trigo que ele cultiva. Tudo isto acompanhado de bebidas e acompanhamentos locais. Começa a falar dos tipos de queijo que temos na mesa, sobre o pão e desbloqueia assim a conversa. Pergunta como ouvimos falar dele e qual o objectivo da visita. Digo simplesmente que soube da sua existência e dos queijos que ele ali produzia e que fiquei curioso, pois mais do que um viajante, sou um colecionador de histórias. Ele sorri, como que incentivando a pergunta óbvia, à qual não me faço rogado. Como é que veio aqui parar, pergunto. O aqui nem era específico, mas ele percebeu.

Sorriu e disse-me: simples! Na Austrália está tudo feito, aqui é que ainda há muito por fazer. Começou por trabalhar na capital num programa de ajuda para famílias com crianças deficientes. O objectivo? Evitar que as famílias doassem essas crianças, pois elas são um fardo em famílias pobres. Como é que isso era feito? Arranjando maneira de que essas famílias tivessem uma cabra, a qual era cuidada pela criança deficiente, transformando assim essa criança numa mais-valia e não num fardo. Com o tempo percebeu que conseguiria fazer mais no interior do país do que na capital e mudou-se. Hoje em dia tem 200 cabras, produz o seu próprio mel, tem galinhas e diz-me que tenta ser o mais auto-suficiente e sustentável possível. A tarefa não é fácil, quando se decide viver no meio do nada!

Qual o seu contributo para os Tajiques hoje em dia? A sua valorização cultural e económica, diz-me. O leite de cabra vale pouco, pois aqui todos têm cabras, mas se transformarmos esse leite em queijo certificado e o vendermos para fora, aí cria-se uma mais-valia enorme. No fundo, o australiano é uma espécie de cooperativa e pólo de desenvolvimento rural, começo a perceber. As dificuldades de exportação? Imensas, diz-me. Ora fecha-se a fronteira com o Afeganistão por causa dos talibãs, depois fecha-se a fronteira com o Uzbequistão por causa de problemas políticos, fecha-se a fronteira com o Quirguistão por causa da Covid e agora tem um camião com material parado na fronteira polaca com a Bielorrússia por causa da guerra na Ucrânia. Efectivamente, ter um negócio sedeado aqui é de loucos, penso, pelo que auto-sustentabilidade é não só um desejo, como uma necessidade imperiosa.

Para além deste trabalho, ele tenta envolver-se com o povo Yagnob, povo que vive isolado no vale que dá origem ao nome da sua etnia (para ele dizer isolado, não imagino como seja). Acrescenta que já só restam algumas centenas de Yagnobs e que ele está a tentar fazer um registo da sua língua, pois muito vocabulário começa-se a perder e é uma língua sem registo escrito, que só sobrevive na oralidade, o que torna este trabalho de extrema importância.

A conversa torna-se um pouco mais pessoal, ele conta-me que tem 7 filhos da sua mulher australiana, a qual de momento está na Austrália com alguns deles. Dois estudam na Índia. Diz-me que uma vez conheceu outro português em Dushanbe, mas desde então nunca mais tinha visto nenhum. Pudera, penso…quantos portugueses passarão por aqui? Só um maluco à procura de outro, provavelmente.

Pergunta-me se quero conhecer a quinta, convite que agradeço.




No final da visita guiada, peço para tirar umas fotos com ele e pergunto como ele quer ser referido no blog: se pelo seu nome australiano, se pelo seu nome tajique, pois ele naturalizou-se e adoptou um nome na língua local. Pergunto ainda qual o seu último nome, o qual me tinha escapado durante toda a conversa.

Ele pensa, como se fosse a primeira vez que lhe tivessem perguntado tal e diz, sem nunca me dizer o seu último nome: coloque o nome tajique…depois pára e rectifica…não, não coloque nome algum. Os nomes não são importantes. Fale de mim somente como “um australiano” que por aqui vive.

Pergunto se ele gostaria de ficar com um contacto meu, ao que ele diz que não é necessário e que, se algum dia quisesse voltar a entrar em contacto com ele, que ligasse para o capataz como desta vez. E assim nos despedimos com um sorriso e desejo de boa sorte recíproco. Antes de sair, tiro uma foto àquela que tinha sido a mesa sumptuosa com que tinha sido recebido e penso para mim: que enorme honra e privilégio tive eu ao ser assim recebido por alguém tão único! Obrigado “australiano”, obrigado!

Passou quase uma hora, são praticamente 16h00 e a maioria do caminho está por fazer. A paisagem continua durante algumas horas na senda da anterior. Zonas rurais onde trabalhadores fazem trabalho manual em terrenos cuja fertilidade me espanta.



Duas horas se passam a chegamos à zona montanhosa, onde o sol anuncia a sua partida para breve. Escarpas, estradas serpenteantes, imensos camiões e paisagens impressionantes fazem-nos companhia até ao pór-do-sol.


De repente, o que é isto? Um tipo está pendurado em cabos eléctricos que percorrem toda a paisagem a colocar adereços para as festividades locais…surreal!

As estradas escavadas naquela paisagem de terra quase marciana criam paisagens que nunca me canso de admirar…e assim peço ao Alishir para parar uma e outra vez, para absorver toda a aquela ambiência pela última vez, pois este era o último dia de viagens por estes países extraordinários. O pôr-do-sol e o vento acompanham-me nesta despedida, sendo que o último fustiga o meu corpo cansado enquanto me tento equilibrar na berma da estrada na ânsia de tirar uma e outra última fotografia. Convido-vos a abrir cada uma das próximas fotos. Se fecharem os olhos, ouvirem o vento e cheirarem a terra, estarão aqui comigo!

Jantamos no restaurante onde tínhamos almoçado a caminho do Uzbequistão, para gáudio do Alishir que continua o jejum do Ramadão. Após a sua refeição, diz num tom visivelmente deleitado: “life is good”!

Pois é, meu caro Alishir, pois é…

sábado, 4 de junho de 2022

Dia 12 de manhã - o extraordinário museu de Cujanda

O descanso foi bom e permitiu recuperar algum do cansaço acumulado. As forças recuperadas foram complementadas pelo pequeno-almoço no hotel, o qual não me canso de dizer é de uma beleza imperial, como podem ver somente pelo salão onde o tomei.

Aliás, creio que posso dizer que Cujanda é efectivamente toda ela grandiosa, não somente pela sua História, mas pelo que os tajiques fazem dela.

O dia começa com a visita ao museu construído em 2006, oficialmente Museu Histórico da Região de Sughd, o qual, arrisco-me a dizer, é dos mais belos e bem pensados museus que já visitei…e já foram alguns. Para contextualizar um pouco, a região em causa está ligada à antiga civilização iraniana de Sogdia no vale Zarafexã. A região foi povoada cerca de 1000 a 500 a.C., tendo depois sido ocupada pelo primeiro império persa aqueménida, por Alexandre o Grande, pelo reino Greco-Báctrio e por várias invasões de nómadas como os sacas, iuechis e mongóis. Mesmo durante a idade média a região teve sempre cidades florescentes, pelo que Cujanda segue essa mesma “linhagem”.

Entro no museu e fico imediatamente extasiado perante o hall de entrada.

Ao saberem que sou português, indicam-me uma guia falante de inglês de seu nome Inoyat Mirzoeva, a qual, pela paixão, conhecimento e doçura em todas as explicações me relembrou uma guia que tive enquanto aluno da secundária ao Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa. Nunca é de mais valorizar o trabalho destes profissionais, os quais nos transportam por viagens no tempo e no espaço também, pois com esta guia senti-me a viajar em todas as dimensões.

O museu guarda História desde as primeiras civilizações de cerca de 4000 a.C. como Sarazm (poderão recordar-se que não consegui visitar Sarazm por ter demorado muito tempo nos Sete Lagos) até ao período soviético mais recente.

Começamos pelo piso subterrâneo e pela fabulosa sala constituída por sete painéis de mármore que mostram a vida de Alexandre, o Grande. Estes painéis foram feitos por um único artista no período de um ano, usando somente mármore nacional. Cada painel leva cerca de 1400 peças de mármore. Destaco aqui dois dos painéis: o primeiro onde Aristóteles mostra espanto pelas respostas do seu discípulo Alexandre, o qual levaria a filosofia aristotélica para leste, Tajiquistão inclusive, à medida que expandia o seu império.

O segundo painel, na sua morte, quando Alexandre pediu para ser transportado com as suas mãos pendentes e abertas para que o povo visse que na morte nada levamos para o outro mundo, nem mesmo o maior dos imperadores.

Saindo da sala de Alexandre, o Grande, entramos na parte mais antiga da exposição que vai desde o paleolítico superior até à idade do ferro. Por muitas fotos que mostre, nunca conseguirei transmitir a atmosfera que respiro nesta sala. Destaco aqui a criatividade e inspiração dos criadores do museu e dos artistas que criaram as duas salas seguintes, retratando como seria a vida nas épocas em questão. Se repararem bem, as paredes não são somente pintadas, como esculpidas, o que contribui para uma sensação de realismo impressionante.

Uma das particularidades criativas deste museu é que caminhamos sobre uma estrutura transparente onde imensos artefactos estão por baixo dos nossos pés, o que faz com que caminhemos literalmente sobre a História. Confesso que, apesar de saber perfeitamente que a estrutura era sólida, fiz este percurso com “pezinhos de lã”!


Termino este percurso e sou “apresentado” ao criador da palavra medicina. Bem, na realidade sou apresentado a alguns artefactos usados por Abu Ali ibn Sina, mais conhecido como Ibn Sina ou, entre nós, por Avicena, o mais importante dos polímatas da Idade do Ouro Islâmica. Se quiserem ficar com uma ideia da sua importância poderemos dizer que Ibn Sina está para o seu tempo como Leonardo da Vinci para o Renascimento. Dos imensos tratados que escreveu sobre os mais variados temas, 240 chegaram aos nossos dias e, destes, 150 são sobre filosofia e medicina.

A sua obra “Cânone da Medicina” foi usada até ao século XVII por várias universidades europeias, o que é extraordinário, tendo em conta que foi escrita no início do séc. XI. É considerado por muitos o percursor da medicina moderna. E porque é que me foi apresentado como estando na origem da palavra medicina? Porque sempre que alguém necessitava de ajuda médica, diziam em persa “Madidi Sina”, o que significa “Ajuda de Sina”. Ter a possibilidade de ver alguns dos instrumentos por ele usado faz-me viajar 1000 anos e tento imaginar como seria a sua “bancada cirúrgica”…indescritível a sensação!

Ainda siderado por esta “apresentação”, segue-se Abu-Mahmud Cujandi (tradução minha, pois não encontrei nenhuma online), outro notório filho de Cujanda. Astrónomo do século X, foi o primeiro a construir um sextante mural e a concluir que a inclinação axial da terra varia ao longo do tempo.

Antes de terminar a viagem pelo museu, visito a “casa” tajique do séc. XVIII.

O museu tem uma pequena livraria/alfarrabista onde me perderia facilmente por uma hora ou mais, mas a viagem longa que tenho pela frente impede-me de usufruir dela como gostaria.

Depois de me ter despedido da fantástica guia, volto atrás e pergunto-lhe se posso tirar uma foto com ela. Acreditem quando vos digo que Inoyat Mirzoeva é a encarnação perfeita da alma do museu e da História de Cujanda. A ela estarei eterna e profundamente agradecido pelos ensinamentos e carinho com que os transmitiu. Que fantástica maneira de começar o dia. Bem-haja!


domingo, 29 de maio de 2022

Dia 11 - Despedida do Uzbequistão e chegada à fantástica cidade de Cujande - 160km

Findado o almoço de trabalho de operadores turísticos para o qual fui simpaticamente convidado e onde me perguntaram com positiva curiosidade e desejo de bem fazer o que eu tinha gostado mais do Uzbequistão e como acharia que se poderia promover o destino na Europa, está na altura de negociarmos o preço do táxi que nos levaria até à fronteira com o Tajiquistão – fronteira de Oybek-Paldorak. 93km separam-nos da fronteira e acordamos o preço de 205.300 Soms, pouco menos de 20 dólares.

A estrada será o equivalente a uma estrada nacional nossa com alguns trajectos com delimitador e muitos sem. À medida que nos afastamos da capital, os veículos novos começam a escassear e a ser substituídos por carros da época soviética e alguns veículos de tracção animal, todos juntos numa via onde as regras de circulação parecem um pouco aleatórias.

Ultrapassagens duplas, ou seja, ultrapassagens a alguém que está a ultrapassar, ultrapassagens em riscos contínuos, tudo com uma enorme normalidade ou não estivéssemos nós no Uzbequistão. Curioso como o modo de conduzir aqui é tão diferente do modo de conduzir no Tajiquistão. A viagem até à fronteira serve, portanto, de despedida do estilo “fast and furious” asiático e da imensidão de Chevrolets brancos de produção nacional.

Esta fronteira tem características muito diferentes da fronteira que tinha cruzado anteriormente quando entrei no Uzbequistão. Tem um aspecto muito mais industrial e o movimento é frenético. Admito que o facto de a estar a atravessar de dia e não de noite ajude a esta minha visão.

No Uzbequistão, enquanto turistas, temos de ter documentos emitidos pelos hotéis onde pernoitamos que comprovem por onde andámos. A ideia de se ficar em casa de um local não parece colher junto das autoridades. No segundo hotel onde fiquei tentaram convencer-me que era tudo digital e que não precisaria do papel, mas preferi guardar os vários papéis e em boa hora o fiz.

No lado uzbeque, a confirmação da documentação de por onde andei e pernoitei é feita demoradamente, não havendo lugar a conversas sobre Cristiano Ronaldo ou sobre o facto de ser português. Talvez por ser uma fronteira mais industrial, a ideia de se ter um turista seja mais esdrúxula. Tratada a documentação e feito o controlo de raio-x, altura de percorrer os cerca de 400m de terra de ninguém com as malas por um percurso de alcatrão nem sempre regular e com inclinação positiva. Um bom exercício para quem nunca experimentou!

Do lado tajiquistanês, preenchimento de novo formulário de imigração, de modo eficiente, mas sem grande cordialidade e com o mínimo inglês possível. Atrás de mim uma senhora com ar de empresária parece incomodada com o facto de o meu processo estar a “empatar” o seu atendimento e travessia da fronteira. Sorrio para ela com o meu melhor sorriso Pepsodent e recebo uma cara fechada ao melhor estilo 17h59 em qualquer repartição pública que encerra às 18h00! Bem, passados os seis postos de controlo reencontro-me com o Alishir e o Sr. Sadullo, preparando-me para a viagem de 67km que me espera.


Está um final de dia nublado, o sol tem dificuldade para brilhar e o cenário é desértico com uma areia escura. A ambiência adquire um tom de ficção científica com uma fotografia cénica de excelência, pelo que a hora de caminho é feita tentando retratar de algum modo tudo o que estou a vivenciar. Confesso que, perante toda a envolvência, não considero tê-lo conseguido, pelo que aqui ficam as melhores tentativas.



Chegamos perto da hora do jantar a Cujande, cidade com 2500 anos de História desde a altura do império persa. Como todas as cidades das rotas da seda, foi tomada por vários impérios ao longo dos tempos. É a segunda maior do Tajiquistão com uma população de cerca de 181.600 pessoas, com a área metropolitana a ter quase um milhão de pessoas. A maioria da população é tajique e de religião sunita.

O hotel onde fico é grandioso, verdadeiramente grandioso, com uma vista sobre o rio Sir Dária se usarmos o nome persa ou rio Jaxartes se usarmos o nome grego.

Chegado ao quarto no sexto piso, constato que não tenho água. Volto à recepção e digo ao amável recepcionista que não tenho água corrente. Ele sorri, vai atrás do balcão e dá-me uma garrafa de água. Ah, pois…a barreira linguística…tento “no running water”, tento “no shower”, tento mais algumas expressões e o sucesso é o mesmo. Felizmente, outra hóspede no hotel ajuda-me simpaticamente e em três tempos o problema está resolvido. Como o sexto piso estava fechado e foi aberto para nós, alguém se esqueceu de abrir a torneira de segurança de todo o piso!!!

Tomo o meu duche, desço para o jantar e, mal me dirijo à recepção, o amável recepcionista tenta compensar o incómodo, devolvendo-nos parte do valor pago pela estadia. Dissemos que não era necessário e prosseguimos para o jantar. O desejo de agradar e bem fazer é mais uma vez constatado, não se privando os actores turísticos locais de agradar quem visita o país. E, acima de tudo, de tentar aprender e melhorar, como comprovaria na manhã seguinte.

Deslocamo-nos para o centro da cidade a pé, usufruindo da noite quente de Abril. O ambiente na cidade é familiar, com animação junto da fortaleza e, para minha surpresa, revela-se uma cidade lindíssima e muito bem cuidada. Apesar de ser segunda-feira, muitas famílias passeiam e passam o serão, comendo gelado e deixando as crianças brincarem livremente.




Decido experimentar uma iguaria local depois do jantar: espetada de batata-frita às rodelas com o sumo local. Digamos que não consegui comer a espetada toda e o sumo é parecido com a laranjada micaelense: demasiado doce para meu gosto.

Antes de chegar ao hotel, deparo-me com uma comitiva da ONU alojada no hotel e vou para o meu quarto.

Sinto o cansaço acumulado e a gravação que faço em áudio das aventuras do dia é recheada de bocejos incontroláveis. Assim adormeço e recupero para o maior e mais incrível dos dias desta aventura pela Ásia Central. Na próxima crónica, contar-vos-ei sobre o fantástico museu de Cujande e a espantosa história do australiano que decidiu viver no meio do nada no Tajiquistão.