Olho para o meu casco e entre limos e cracas carrego em mim
vidas sem fim. Cada um deles marca uma paragem, uma aventura, um destino. Gosto
dos meus limos e das minhas cracas. Não me pesam, são tão somente parte de mim.
Alguns de entre nós não zarpam assim, dizem-se pesados e
lentos, mas eu não. Gosto de navegar assim, com todas as memórias que me
trazem, mesmo que me tornem ligeiramente mais lento. No fundo ganho mais dias
de mar com eles e isso nunca pode ser mau para quem se diz parte de mar feito.
Descobri-a enquanto repousava numa marina: lindíssima, elegante, de linhas modernas, feita para navegar mares altos…foi-me impossível não me apaixonar, tal a graça com que se destacava de entre todas as outras.
- Para onde irás navegar de seguida? - Quem sabe os nossos
destinos estariam entre-cruzados. Marés existem muitas, marinheiros também, mas
a felicidade não se faz somente de marés e marinheiros, mas também de destino e
de devir.
- Por mares tranquilos e conhecidos, respondeu. Não vês os meus limos apensos? Não creio que nenhum de nós aguentaria novos mares, pois eu não me sinto capaz para tal e não quero perdê-los igualmente. Sinto-me mais confortável assim...
Confortável, pensei. Fui ver
a definição de conforto, pois sobre ela nunca tinha reflectido: “Nova força,
novo vigor, bem-estar, consolação, comodidade, conchego”. Nunca tinha pensado
no conforto como uma força nova, mas terá o seu sentido suponho. Quando nos
aconchegamos e descansamos, retemperamos forças para novas navegações, para
novas tormentas e para novos destinos.
Permaneci impávido sem nada lhe dizer. Nunca tinha pensado realmente
que tal seria possível: dar aos nossos limos nova força no conchego.
Um veleiro por mares calmos e sem vento forte que por ele puxe é como uma ave de asas cerceadas, pensei
para com as minhas escotilhas. Existirão aves engaioladas felizes? Talvez…a felicidade
depende afinal tão exclusivamente das expectativas que criamos das nossas demandas.
Virei-me para os meus limos como se de meus filhos se
tratassem, pois efectivamente eram, dizendo-lhes: Quero que cresçam em mim, quero que sintam a
força da vaga na proa, as correntes, as marés, o sal queimado do sol,
vislumbrando novos horizontes, ora de nuvens carregadas, ora de luares espelhados. O meu conforto passa por ali, mais à frente. Conseguem vê-lo?
- Consegues ver? Consegues
ver-me ainda de onde decidiste ficar?
Sinto saudades do mar, do vento, das guinadas, das rajadas,
de ser surpreendido e de vincar a minha proa na água…
- Gostaria de te ter aqui, sabias?
Do alto do meu mastro,
vislumbro o mundo que me espera e abraço-o com toda a força que tenho.
Descobri contigo que o mundo me é confortável, afinal!
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