sábado, 27 de abril de 2019

Confortos




Olho para o meu casco e entre limos e cracas carrego em mim vidas sem fim. Cada um deles marca uma paragem, uma aventura, um destino. Gosto dos meus limos e das minhas cracas. Não me pesam, são tão somente parte de mim.

Alguns de entre nós não zarpam assim, dizem-se pesados e lentos, mas eu não. Gosto de navegar assim, com todas as memórias que me trazem, mesmo que me tornem ligeiramente mais lento. No fundo ganho mais dias de mar com eles e isso nunca pode ser mau para quem se diz parte de mar feito.

Descobri-a enquanto repousava numa marina: lindíssima, elegante, de linhas modernas, feita para navegar mares altos…foi-me impossível não me apaixonar, tal a graça com que se destacava de entre todas as outras.

- Para onde irás navegar de seguida? - Quem sabe os nossos destinos estariam entre-cruzados. Marés existem muitas, marinheiros também, mas a felicidade não se faz somente de marés e marinheiros, mas também de destino e de devir.

- Por mares tranquilos e conhecidos, respondeu. Não vês os meus limos apensos? Não creio que nenhum de nós aguentaria novos mares, pois eu não me sinto capaz para tal e não quero perdê-los igualmente. Sinto-me mais confortável assim...

Confortável, pensei. Fui ver a definição de conforto, pois sobre ela nunca tinha reflectido: “Nova força, novo vigor, bem-estar, consolação, comodidade, conchego”. Nunca tinha pensado no conforto como uma força nova, mas terá o seu sentido suponho. Quando nos aconchegamos e descansamos, retemperamos forças para novas navegações, para novas tormentas e para novos destinos.

Permaneci impávido sem nada lhe dizer. Nunca tinha pensado realmente que tal seria possível: dar aos nossos limos nova força no conchego.

Um veleiro por mares calmos e sem vento forte que por ele puxe é como uma ave de asas cerceadas, pensei para com as minhas escotilhas. Existirão aves engaioladas felizes? Talvez…a felicidade depende afinal tão exclusivamente das expectativas que criamos das nossas demandas.

Virei-me para os meus limos como se de meus filhos se tratassem, pois efectivamente eram, dizendo-lhes: Quero que cresçam em mim, quero que sintam a força da vaga na proa, as correntes, as marés, o sal queimado do sol, vislumbrando novos horizontes, ora de nuvens carregadas, ora de luares espelhados. O meu conforto passa por ali, mais à frente. Conseguem vê-lo?

- Consegues ver? Consegues ver-me ainda de onde decidiste ficar?

Sinto saudades do mar, do vento, das guinadas, das rajadas, de ser surpreendido e de vincar a minha proa na água…

- Gostaria de te ter aqui, sabias? 

Do alto do meu mastro, vislumbro o mundo que me espera e abraço-o com toda a força que tenho.

Descobri contigo que o mundo me é confortável, afinal!





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