Ao fundo começo a ouvir a harmónica
do amolador e deixo que a melodia me transporte para uma infância feliz onde o
amolador passava amiúde na minha rua.
À altura a rua era partilhada pela
carreira para Caneças e pelas borboletas que esvoaçavam por toda a Odivelas antiga.
Imaginava as borboletas a alegrarem as manhãs das lavadeiras nos tanques dos
Pombais, embaladas também elas pelas cantigas que nunca cheguei a ouvir, pois
na minha criancice só os tanques permaneciam. As lavadeiras há muito que tinham
sido substituídas pelas máquinas de lavar roupa. Ficaram as borboletas durante
alguns anos e, mais tarde, só o amolador, pois também as borboletas não
resistiram ao avanço do “progresso” em Odivelas.
Vou à janela e deixo-me embalar
pela figura magra do amolador que ao fundo da rua se anuncia. Caminha com a sua
velha bicicleta empurrada pela mão esquerda enquanto alegra a rua com a
harmónica na mão direita.
Ah, o meu cutelo precisa de ser
afiado! Está cheio de “trincas” das pancadas que já dei em osso. Da janela
escondida pelos andaimes das pinturas grito: “ò amiiigo!”. Calmo, de cima dos
seus 60/70 anos de vida faz-me sinal que me aguarda na rua.
Por algum motivo estranho
sinto-me entusiasmado por, finalmente, ir conhecer “o amolador”, por ter
chegado o dia em que aquela figura, personificada neste homem, se fará de carne
e osso e não somente de melodia.
Corro para os ténis, calço-os e
pego no cutelo que se escondia no fundo da gaveta. Desço as escadas a correr
com o cutelo na mão e penso: “Se algum vizinho abrir a porta de sua casa de
repente vai pensar que é uma partida de Halloweeen muito parva!!!”.
Ao chegar à rua já o amolador
montou o suporte na sua bicicleta e espera por mim.
- Pois olhe: tenho este cutelo todo
trincado – digo eu, como se não tivesse sido eu o causador do mau estado do
cutelo. Por algum motivo senti que tinha falhado para com o cuidado que o
cutelo merecia, cutelo esse que o amolador olhava com pormenor.
Sem uma palavra dita monta a correia
da pedra amoladora na roda de trás e, subindo para a bicicleta, dá início a uma pedalada
firme para afiar a lâmina do cutelo: uma face, a outra, volta para a primeira, regressa
à segunda e pára. Desmonta da bicicleta e pega numa lixa com a qual percorre a
lâmina vagarosamente. Volta a montar a bicicleta e repete o primeiro processo
mais lentamente.
Quanto tempo durou tudo isto? Não
sei, naquela altura o tempo tinha parado para mim. Reparo então nas varetas de
guarda-chuva que carrega consigo. Quem reparará guarda-chuvas hoje em dia?
Chama-se Luís, vejo eu escrito de
lado na sua bicicleta. Tem o seu número de telemóvel escrito também. Prefiro
não tomar nota. Não quero que o amolador passe a fazer parte dos meus contactos
juntamente com o canalizador, o electricista e outros tantos que não se
fazem anunciar com um embalo.
- E pronto, cá está ele como
novo.
- Obrigado, digo eu olhando para
o meu rejuvenescido cutelo. Quanto lhe devo?
- Cinco euros, foi mais caro
porque tive de lhe tirar as “bocas”. Se fosse só afiar eram três.
- Aqui tem, muito obrigado.
Não consegui pronunciar mais
palavra alguma. O amolador volta a desmontar o apoio da bicicleta e pega na
harmónica. Viro as costas para não o observar ostensivamente e, enquanto
caminho escadas acima, a sua música volta a embalar a rua.
Ao chegar a casa volto à janela
somente para o ver dobrar a esquina.
Porque não lhe disse que admirava
a sua tenacidade nesta arte? Que caminho de vida percorreu até aqui chegar?
Terá sido sempre embalador de ruas?
O sol brilha quente. Se calhar é
melhor assim, continuará misterioso como todos os amoladores, alguém que entra
e sai das nossas vidas embalando-nos sem nada pedir em troca.
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