quinta-feira, 22 de outubro de 2015

O amolador

Ao fundo começo a ouvir a harmónica do amolador e deixo que a melodia me transporte para uma infância feliz onde o amolador passava amiúde na minha rua.

À altura a rua era partilhada pela carreira para Caneças e pelas borboletas que esvoaçavam por toda a Odivelas antiga. Imaginava as borboletas a alegrarem as manhãs das lavadeiras nos tanques dos Pombais, embaladas também elas pelas cantigas que nunca cheguei a ouvir, pois na minha criancice só os tanques permaneciam. As lavadeiras há muito que tinham sido substituídas pelas máquinas de lavar roupa. Ficaram as borboletas durante alguns anos e, mais tarde, só o amolador, pois também as borboletas não resistiram ao avanço do “progresso” em Odivelas.

Vou à janela e deixo-me embalar pela figura magra do amolador que ao fundo da rua se anuncia. Caminha com a sua velha bicicleta empurrada pela mão esquerda enquanto alegra a rua com a harmónica na mão direita.

Ah, o meu cutelo precisa de ser afiado! Está cheio de “trincas” das pancadas que já dei em osso. Da janela escondida pelos andaimes das pinturas grito: “ò amiiigo!”. Calmo, de cima dos seus 60/70 anos de vida faz-me sinal que me aguarda na rua.

Por algum motivo estranho sinto-me entusiasmado por, finalmente, ir conhecer “o amolador”, por ter chegado o dia em que aquela figura, personificada neste homem, se fará de carne e osso e não somente de melodia.

Corro para os ténis, calço-os e pego no cutelo que se escondia no fundo da gaveta. Desço as escadas a correr com o cutelo na mão e penso: “Se algum vizinho abrir a porta de sua casa de repente vai pensar que é uma partida de Halloweeen muito parva!!!”.

Ao chegar à rua já o amolador montou o suporte na sua bicicleta e espera por mim.
- Pois olhe: tenho este cutelo todo trincado – digo eu, como se não tivesse sido eu o causador do mau estado do cutelo. Por algum motivo senti que tinha falhado para com o cuidado que o cutelo merecia, cutelo esse que o amolador olhava com pormenor.



Sem uma palavra dita monta a correia da pedra amoladora na roda de trás e, subindo para a bicicleta,  dá início a uma pedalada firme para afiar a lâmina do cutelo: uma face, a outra, volta para a primeira, regressa à segunda e pára. Desmonta da bicicleta e pega numa lixa com a qual percorre a lâmina vagarosamente. Volta a montar a bicicleta e repete o primeiro processo mais lentamente.
Quanto tempo durou tudo isto? Não sei, naquela altura o tempo tinha parado para mim. Reparo então nas varetas de guarda-chuva que carrega consigo. Quem reparará guarda-chuvas hoje em dia?

Chama-se Luís, vejo eu escrito de lado na sua bicicleta. Tem o seu número de telemóvel escrito também. Prefiro não tomar nota. Não quero que o amolador passe a fazer parte dos meus contactos juntamente com o canalizador, o electricista e outros tantos que não se fazem anunciar com um embalo.

- E pronto, cá está ele como novo.

- Obrigado, digo eu olhando para o meu rejuvenescido cutelo. Quanto lhe devo?

- Cinco euros, foi mais caro porque tive de lhe tirar as “bocas”. Se fosse só afiar eram três.

- Aqui tem, muito obrigado.

Não consegui pronunciar mais palavra alguma. O amolador volta a desmontar o apoio da bicicleta e pega na harmónica. Viro as costas para não o observar ostensivamente e, enquanto caminho escadas acima, a sua música volta a embalar a rua.

Ao chegar a casa volto à janela somente para o ver dobrar a esquina.
Porque não lhe disse que admirava a sua tenacidade nesta arte? Que caminho de vida percorreu até aqui chegar? Terá sido sempre embalador de ruas?

O sol brilha quente. Se calhar é melhor assim, continuará misterioso como todos os amoladores, alguém que entra e sai das nossas vidas embalando-nos sem nada pedir em troca.

Obrigado senhor Luís, obrigado!




quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A espera




A espera é sempre um processo angustiante, mesmo quando a espera é expectável - Será que ele viria a horas como ela desejava? – A dúvida era legítima, pois não seria a primeira vez que tal lhe aconteceria, ter de esperar mais do que gostava. Contudo, algo lhe dizia que desta vez seria diferente. Estava longe de ser o primeiro por quem esperava na sua vida, afinal.

Este breve pensamento fê-la recuar anos para a sua primeira vez. Sentia-se temerosa e excitada na altura. Lembrava-se bem de como o chão tremeu. A memória não a traía, especialmente a ela que a tinha bem treinada. O seu trabalho como tradutora simultânea era um excelente exercício mental que a ajudava a manter uma atenção a todos os pormenores, a tudo o que poderia ser ou não importante. Não se podia queixar da vida afinal. Após ter terminado o seu curso rapidamente arranjou trabalho e, apesar de estar longe dos seus, a vida sorria-lhe. 

Voltou a olhar para o relógio, mas o mesmo parecia não andar. Deu por si a viajar no tempo de novo. Na sua primeira vez tudo tinha sido tão rápido que mal tinha tido tempo para saborear a viagem que ele lhe tinha proporcionado: viagem de sensações, de odores, de tremores.

Ao longo destas suas três décadas de vida já tinha alguma experiência para não se deixar ficar em ânsias, mas a verdade é que os quinze minutos iniciais de espera prevista já se tinham convertido no dobro. Será que ele viria a tempo? “Mas porque é que será que eu tenho de ser assim?”. Já se começava a irritar com esta sua maneira impaciente de ser. Ela não era assim na terra beirã que a viu nascer, por que se transformou neste bicho stressado desde que foi viver para Lisboa?

A impaciência já a tinha feito perder algumas coisas na vida. Desta vez não deitaria tudo a perder. Iria ficar ali onde era "suposto". Nada de mudanças de planos à última da hora!

E sim, já os tinha tido de vários tipos na sua vida: elegantes, modernos, sofisticados, mas também clássicos, conservadores, algo antiquados até. Contudo, a vida é feita disto mesmo, não é? De experiências, de vivências, de esperas, de encontros, de desencontros. “Tudo é vida, lembra-te disso.” Olhou para o seu smartphone de última geração: nada! Suspirou...

Ela não gostava de não ter alternativas. Considerava-se uma mulher do séc. XXI onde não há lugar para frustrações deste género. Nesse momento pensou em ir-se embora, afinal opções não lhe faltavam.

Voltou a olhar para o horizonte em vão. Bem, creio que vinte minutos de atraso chegam. Não espero mais!

Decidiu voltar costas e ir embora. Poderia não ser a mesma coisa e não era. O entusiasmo, o tremor e a emoção que sentia sempre que ele chegava seriam substituídos pela rotina, por aquilo que é certo, pela segurança, mas a vida é feita de escolhas e a dela estava feita. Não pensaria mais nisso.


Ao caminhar rua fora pelo passeio de calçada, o qual fazia questão de fazer ecoar os seus tacões, ouviu ao longe aquilo que parecia ser ele e, num ápice, deu por si a correr para trás. Sim, era mesmo! Ela sabia. Estava atrasado, mas afinal não lhe iria falhar. Ela adorava comboios e, de todos, o intercidades era o seu preferido!!!



segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Os "outros"

Vejo diariamente artigos, publicações, crónicas e opiniões sobre a questão dos refugiados de guerra da Síria. Não, não são migrantes. Migrantes são as andorinhas. São refugiados de guerra, pessoas que tinham o seu emprego, cujos filhos estavam na escola, pessoas que tinham o que consideramos uma vida normal antes de a guerra lhes ter batido à porta com estrondo!

De um dia para o outro viram a sua vida transformada num inferno. Trabalhar era impossível, as janelas tinham de ser mantidas abertas para não estilhaçarem sempre que um morteiro caía mais perto, as crianças deixaram de ter escola onde ir, os feridos deixaram de ter um hospital para os auxiliar e a rua onde dantes as crianças brincavam passou a ser um “teatro de guerra”.

Perante a situação decidiram os chefes de família gastar todo o seu dinheiro, certamente acumulado com muito esforço e suor, para pagar uma viagem arriscada, mas com a possibilidade de puderem oferecer segurança para os seus filhos. Ou, em alternativa, uma morte rápida que não às mãos do estado islâmico. Mas acredito que seja a possibilidade de darem uma hipótese aos seus filhos que os moveu.

Sim, certamente que sabem que estão a pagar a pessoas sem escrúpulos que fazem do tráfego humano o seu modo de enriquecimento. Sem dúvida que sabem que estão a sustentar corruptos. Mas sem dúvida que também sabem que sem eles não terão nenhuma possibilidade de chegarem à Europa. Europa essa que sabem ter a humanidade que falta em outros países islâmicos como a Arábia Saudita ou o Qatar.

Nestes tempos em que a crise da Europa é tão falada e em que, nós portugueses, sabemos bem o que é não terem solidariedade para connosco, fico triste por ver que alguns de nós defendem que não deveríamos acolher refugiados de guerra, enunciando vários motivos.

O primeiro motivo prende-se com o medo de, no meio destes refugiados, poderem vir terroristas. Reconheço que o medo é legítimo, mas fecharmos as fronteiras a crianças que fogem da guerra, da tortura e da fome por causa do medo, só demonstra que o medo já venceu, que os terroristas nem precisam de vir para cá, pois já nos venceram. Ao tirarem-nos a humanidade, a solidariedade e a compaixão terão destruído o que de melhor nós temos, pois sem isso somos pessoas muito mais pobres, pessoas muito mais tristes, pessoas para quem o futuro estará cheio de muitas coisas, mas não de valores que possamos transmitir aos nossos filhos.

O segundo motivo está ligado à crise que atravessamos. Se não conseguimos evitar que os nossos filhos emigrem, como é que podemos acolher estas pessoas? Que tipo de governo pondera dar casas e dinheiro a refugiados quando “obrigou” o seu povo a emigrar? Todos nós conhecemos quem tenha tido de emigrar, a esmagadora maioria de nós estamos pior agora do que há uns anos, mas nenhum de nós viu a escola primária da sua terra desaparecer sob escombros, nenhum de nós viu o hospital da sua área ser destruído, nenhum de nós vive sem a possibilidade de um futuro. Não digo melhor ou pior, mas sim de um futuro. Coisa que estas pessoas, que estas crianças não têm. Nem presente têm, pois as suas vidas foram-lhes suspensas pela guerra. E estes são os sortudos, aos outros a guerra não suspendeu a vida, limitou-se a levá-la.

O terceiro motivo está relacionado com o facto de alguns países muçulmanos não os acolherem: aos seus. Porque haveremos nós de fazê-lo? Este motivo parece-me o mais pífio de todos. Sim, existem pessoas mais solidárias, outras menos, existem povos mais amigáveis que sempre acolheram os nossos emigrantes e outros menos. Os que nos souberam acolher ganharam ou perderam com isso? E nós? Queremos ganhar com a solidariedade e a integração ou queremos perder com a falta dela? A resposta parece-me clara.

Vejo também quem fale dos indigentes portugueses, das crianças órfãs em Portugal que ninguém acolhe, gente essa agora disposta a acolher as crianças “dos outros”. Sinceramente, quando vejo uma criança necessitada de ajuda só vejo uma criança. Não vejo a sua cor, o seu credo ou a sua origem. Vejo uma criança. Não deveríamos todos vê-la também?

Finalmente abordo a questão de o facto de esta gente ser diferente, de não assimilar os nossos costumes, de serem do credo religioso a que também pertencem os membros do Estado Islâmico. Não vou precisar de relembrar que, entre nós, “bons cristãos”, existem violadores, pedófilos, corruptos, quem assassine inocentes por causa de um cão barulhento, pessoas que não têm pudor nenhum em prejudicar outrem para se beneficiarem a si, etc., etc. Para esses todos e para os que vierem que violem as leis contamos com um estado de direito, certamente não perfeito, mas um estado de direito. Algo que, já agora, eles também deixaram de ter no seu país.

A integração feita por amor ao próximo e compaixão não empobrece, enriquece quem acolhe e quem é acolhido. E nós? Que queremos para o nosso futuro? O empobrecimento material comparativamente a um passado recente não nos chega? Queremos mesmo somar a esse empobrecimento material o empobrecimento da alma de quem recusou solidariedade a quem nada restava? Eu, pessoalmente, abdico do segundo. E você?



Foto tirada de: http://studart.blog.br/index.php/quando-as-jovens-andorinhas-chegarem-a-ecoescola/


terça-feira, 25 de agosto de 2015

Running, Crossing ou bardamerdeite para esta moda

A sério, isto do “Running” e do “Crossing” e mais não sei do quê enerva os anjinhos. Mas o que raio é que aconteceu à corrida e ao corta-mato? Emigraram também?

Porque é que se insiste em utilizar termos anglo-saxónicos quando a nossa língua tem já palavras para tal? Para dar um ar de modernismo bacoco?

Gostava de conhecer o tipo que decidiu que corrida não era bom o suficiente e passou a dizer “Running” e, especialmente, gostaria de espiá-lo no dia-a-dia. Estou mesmo a ouvi-lo:

- Estou? Mãe? Aconteceu-me aqui uma coisa no trabalho e não posso ir “Dining” consigo. Sim, mãe, “Dining”. Eu sei que tinha dito que ia aí jantar, mas como estou farto de pataniscas de bacalhau, decidi chamar-lhe “Dining”. Assim como pataniscas à mesma, mas soam-me a escalopes de garoupa!!!

Horas mais tarde…

- Amor: anda cá!

- Agora não posso que estou a fazer “Ironing” (sim, aquilo lá por casa deverá ser contagioso!!!)

- “Ironing” com este calor? Mas que te deu para isso agora?

- Olha, se o menino parasse de fazer “Scratching” no sofá e viesse mas era ajudar com o “Washing” da loiça é que fazia bem em vez de estar para aí “sending” bitaites!!! E se fosse a ti despachava-me se não mais logo não há “Fu**ing” para ninguém!!!

É claro que também podemos imaginar que o tipo em questão usa um telemóvel para calcular as calorias que gasta em todas estas actividades, o tempo que demora, a distância que percorre e depois, é claro, mete tudo no Facebook. Ou se calhar não…adiante!

Posto isto, se alguém conhecer o fulano em questão gostaria de lhe sugerir um novo desporto que me ocorreu enquanto corria hoje (sim, eu sou pobre, só corro mesmo). Chama-se “Tanging”!

Não, não é corrida à Durão Barroso usando tanga e muito menos uma versão da corrida das bandejas com a famosa bebida Tang em copos que os empregados têm de levar do ponto A para o ponto B.

A ideia surgiu-me quando, graças ao modo aleatório do meu leitor de mp3, dei por mim a correr enquanto ouvia Astor Piazzolla. Imaginem: a correr de sapatinho brilhante, vestido a rigor e com uma rosa na boca ao som de Astor Piazzolla. Isto sim, seria um desporto com classe...agora "Running".


E já sabem, se algum ginásio copiar esta ideia fica aqui o aviso: o “Branding” é meu!


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Só por ti...

A noite passeia-se, impávida e serena, como que fazendo troça de mim. Sabe que a procuro, que a desejo, mas que nunca será minha como eu sou dela. Por isso pode dar-se ao luxo de agir assim comigo, como se todo o tempo do mundo fosse dela como é.

Abomino-te, sabes? Pérfida como és, sabes perfeitamente que estás condenada a morrer assim que o Sol nascer e nem assim deixas de me encantar intensamente como se não houvesse amanhã!

Achas piada? Calculo que sim, que te rias desmesuradamente somente porque sim, porque podes. Quantos somos? Ao menos fazes ideia do tamanho do teu harém? Quantos ansiamos por que chegues só para te vermos partir como se nunca tivesses existido?

Adormecido enquanto acordado vagueio por ti, descubro-te, reencontro-te, reconheço-te e perco-te. Por vezes descubro-me em ti, outras vezes perco-me ao descobrir-te. Maldito seja o teu encanto!

Porque não me levas de vez e deixas de atormentar-me? Leva-me nos teus braços embalando-me como só tu sabes, levas? Faz-me voar montado no Pégaso dos meus sonhos, calcorreando os teus negros prados de luar banhados para depois me deixares cair ao som do vento numa canção de eterna saudade do devir.

E este é o meu fado: desejar-te para todo o sempre quando sei que todo o teu sempre acaba já, até à próxima vez que me vieres desinquietar no meu sossego com a tua melodia insidiosa.


Odeio-te tanto que te amo como nunca amei o Sol, apesar de ele me aquecer nesta cruel sobrevivência por ti vivida. Só por ti…