São as três belíssimas, mas a madraça da direita é a que me cativa mais pela sua história. Local onde não somente se aprendia o Corão, mas também todas as ciências. Na sua fachada estão o veado, o tigre e o sol. Significado: o veado representa o conhecimento e é um animal difícil de caçar, pelo que só os mais fortes tigres são capazes de caçá-los. O tigre representa o aluno, o qual, quando era dado como apto no final dos seus estudos, teria caçado o seu veado. Nessa altura, o sol, símbolo de um novo amanhã, nasce sobre o tigre.
Na entrada deparo-me com artesãos
que trabalham pratos de metal, martelando e esculpindo arte nas suas faces. Uma panóplia de
pratos e outras peças encontram-se expostas. Dizem-me que os aprendizes estão a
trabalhar sob supervisão do mestre, o qual está mais afastado a um canto.
Começo a fazer perguntas sobre quantos dias demora um prato que me prende a atenção a fazer e dizem-me: dez dias de trabalho. As perguntas trazem o mestre até mim. Chama-se Lutfullo Ir Lutfi e diz-me com orgulho que já conheceu muitos dignatários estrangeiros, pois é muitas vezes escolhido para representar o que de melhor o Uzbequistão tem. Fala-me de Putin, de Kofi Annan…e os seus olhos viajam no tempo! Conversamos mais um pouco com a ajuda inestimável do Lochin e da Zarina, compro as peças que mais gostei e despeço-me desejando boa sorte para o mestre e para os seus aprendizes.
Entramos na praça e sou conduzido a uma outra loja onde me perguntam se quero experimentar o traje dos monges nómadas que percorriam toda a zona há vários séculos. Os monges nómadas não tinham bens terrenos alguns para além das suas roupas e pertences que traziam consigo, pelo que não me faço rogado a experimentar. Posso garantir que o traje é pesadíssimo e se, no inverno, creio que poderia ser muito útil por ser tão espesso, não consigo conceber usá-lo no Verão com temperaturas perto dos 50 graus, pois estavam 30 e eu fiquei a suar em pouco tempo de uso sem me mexer e à sombra. Depois do traje completo vestido, altura de tirar fotos para nos podermos rir todos um pouco. Se dúvidas havia, ficaram esclarecidas que não tenho, efectivamente, perfil para ser monge!
Passamos por mais artesãos de
várias artes, artes que foram transmitidas ao longo dos séculos pelos artesãos
que foram capturados pelo Emir Timur nas suas conquistas (sei que não precisam
que vos relembre, pois são leitores atentos do blog…cof, cof…).
Continuamos a percorrer as madraças, as quais estão relativamente vazias, pois é sexta-feira à tarde, estamos no Ramadão e o turismo aqui ainda não arrancou verdadeiramente pós-pandemia. São belas peças de arquitectura e é fácil deixarmo-nos imergir na ambiência de paz e tranquilidade que emanam.
Finalizada a visita à Praça de
Reguistão, altura de apanharmos mais um táxi Fast and Furious para o complexo
de Shakhi Zinda, cidade de peregrinação islâmica na Ásia Central, uma espécie
de Meca. E porquê uma espécie de Meca? Mais à frente lá chegaremos.
Chegando à entrada do complexo
que alberga imensos mausoléus, deparo-me com uma escadaria, a qual tem uma
história associada, o que não é de estranhar, como já devem ter reparado por
esta altura. Antigamente, pelo facto de se fazerem peregrinações, cada
peregrino tinha de citar uma parte do Corão a cada degrau. Existem várias
lendas associadas a estas escadas, mas o costume actual diz que, crente ou
turista, devemos contar o número de degraus ao subir e contarmos os degraus ao
descer. Caso o número seja igual, estamos livres de pecados e podemos pedir um
desejo.
Confesso que fiquei um pouco
espantado com a facilidade com que se expiam os pecados por estes lados. É
preciso estar muito grogue para não se conseguirem contar 40 degraus. E com o
bónus de ainda se poder pedir um desejo. Por isso já sabem: se tiverem muitos pecados
para expiar, basta vir aqui fazer um stepzinho e está feito…e ainda levam um
unicórnio para casa!
Subida a escadaria, visito então
os vários mausoléus, os quais são autênticas obras de arte, o que já é um lugar
comum nesta cidade.
Chamo a atenção para o facto de as paredes serem esculpidas.
Mausoléu após mausoléu chego ao
mausoléu de Kusam Ibn Abbas, primo de Maomé, o qual dele disse que “era de
todas as pessoas, a que mais se parecia com ele de aparência, de carácter e de
natureza”. Esta frase acabou por imbuir Kusam Ibn Abbas de uma aura divina,
facto que está na base das peregrinações ao complexo, pois visitar o seu
mausoléu é, depois de Meca, das maiores e mais importantes viagens que um
muçulmano pode fazer.
Entro na zona onde está o corpo
de Kusam Ibn Abbas e fico em silêncio. Sem que me aperceba, entra um imã na
sala e pergunta de onde eu sou. É-lhe dito que sou de Portugal, sendo feito
sinal para que nos sentamos. Assim o fiz e, quando dou por mim, estou a três
metros do primo de Maomé com um imã a citar versos do Corão e com os dois guias
a seguirem as citações com movimentos das suas mãos que eu desconheço por
completo.
Sou inicialmente inundado por uma
sensação de invasão de privacidade, como se estivesse a assistir a algo que não
devia, mas respiro fundo e deixo-me transportar pelo som das citações e pelo
simbolismo de tudo o que me rodeava. Acabado o ritual, o imã despede-se, altura
em que pergunto o que havia sido dito.
- “Ele citou uns versos do Corão
e desejou boa sorte ao homem de Portugal nas suas demandas”. Já não lhe pude
agradecer, pois já tinha partido, mas sinto-me naquele momento um homem com
efectiva boa sorte!
Ainda meio anestesiado pela
experiência, chego ao topo de escadaria, preparado para iniciar a contagem de
descida. Concentro-me, foco-me na tarefa e…não é que eram exactamente 40
degraus, tanto na descida, como na subida? Fantástico!!!!
Olha deixem cá pensar num desejo:
já sei!
- Desejo que estas escadas sejam
transportadas para Montalvo para que não precise de fazer mais de 6000km para
expiar os meus pecados! Estou a brincar, todos vocês sabem que não tenho
pecados para expiar, certo?
Saímos do complexo e vamos para o
mausoléu de São Daniel. Desta vez a viagem é mesmo muito fast e muito furious
num táxi com o vidro da frente rachado de uma ponta à outra, com direito a
inversões de marcha em duplos riscos contínuos e mais uma panóplia de manobras
“divertidas”.
São Daniel: figura sagrada para três religiões (cristianismo, judaísmo e islão), o que se não será único, será certamente muito raro. Este carácter especial está na base da lenda de que a cidade onde ele descansa nunca será conquistada. E a verdade é que todos os conquistadores sempre pouparam Samarcanda à destruição e ao saque. Dezoito metros de túmulo (ok, não o medi realmente!) guardam os seus restos mortais. E porquê tão grande? Alegadamente, para ser mais difícil destruir os seus restos mortais por um inimigo, pois não se sabe para onde disparar…alegadamente.
Antes de sairmos, visitamos uma árvore de pistáchio com 500 anos, a qual é muito visitada por ter secado e, depois de uma visita do Patriarca de Moscovo, ter voltado a ter ramos verdes (nunca me deixo de espantar com as razões porque algumas coisas/pessoas ganham notoriedade). Ao chegar à dita cuja, encontramos um grupo de senhoras de alguma idade que, muito animadas, nos pedem para lhes tirarmos uma foto. Perguntam de onde sou (como devem imaginar, eu destaco-me do resto dos frequentadores do local como um pinguim no deserto!), ao que lhes dizem que sou de Portugal….3, 2, 1…e nada. Não oiço “Cristiano Rounaldo” como de costume sempre que digo que sou de Portugal. De facto, tendo em conta a provecta idade das senhoras e o seu carácter religioso, se calhar não sabem quem é o rapazola.
Já está? Não, não está, diz-me o
Lochin…agora vamos visitar a fábrica de papel de Samarcanda. Fábrica de papel?
Eu vivo no concelho de Constância, tenho lá uma, obrigado…pois…este papel é
diferente…mas diferente em quê…sigamos então!
Chegado ao local, deparo-me com
duas senhoras a “despirem” manualmente ramos a grande velocidade e pergunto-me
que estarão elas a fazer. Pois, estão a dar início ao processo de produção do
papel. Do mesmo modo que aprenderam a fazer com um prisioneiro chinês há sete
séculos, em Samarcanda replicam o processo na íntegra! Resumindo: descascar os
ramos, cozer, prensar, purificar, secar, polir. Tudo manualmente, com a ajuda
de uma prensa movida pelo ribeiro.
O dia foi imensamente longo, mas extremamente
rico em tantas, mas tantas experiências, aprendizagens e vivências que me sinto
imensamente feliz…e, como dizia o imã, muito afortunado!
Amanhã será dia de seguir para
Bucara, outra cidade da Rota da Seda. Mas, para já, repor energias que o
cansaço e as poucas horas de sono começam a acumular-se.
Despeço-me com uma foto da Praça de Reguistão à noite, tendo lá ido de propósito depois do jantar só para a ver assim iluminada…digam lá que não valeu a pena o esforço extra :)
Sem comentários:
Enviar um comentário