Embarco numa aeronave particularmente antiga para uma viagem de longo curso. Os monitores do entretenimento parecem tirados de um Atari (os mais novos de vós poderão googlar o que é!, pelo que a qualidade do entretenimento promete!!! Felizmente descarreguei o audiolivro do Orgulho e Preconceito, pelo que estou assegurado para a viagem (cara de satisfaçãozinha).
A meu lado tenho um inglês de origem indiana com o seu filho. Confesso que
entre a sua pronúncia e o facto de o indivíduo gostar de vinho tinto (mais à
frente volto ao tema), não foi fácil perceber tudo o que me dizia. Meto
conversa perguntando se ele já tinha feito esta rota e se sabia quantas
refeições quentes serviam durante a mesma. Diz-me que duas, o que me parece
razoável, tendo em conta a duração da viagem, pois este corpinho não vive do
ar, etc e tal.
Após estarmos a voar há uma hora, servem uns aperitivos, altura em que o
meu vizinho pede vinho tinto para acompanhar. Perante duas hipóteses, escolhe o
merlot e dá-se por satisfeito. Começa a contar-me que vai para uma festa de
casamento em Vancouver e pergunta-me de onde venho. Não se lembra onde é Lisboa,
ao que lhe respondo Portugal. Ah, Portugal. Já aí estive duas vezes: em
Albufeira! Estive para lhe dizer que isso é igual a dizer que já se esteve em
Paris, quando só se foi à Disneylândia, mas prefiro não. Vinha aí uma
espectacular explicação para o Brexit!
Pois, diz ele. O meu filho já foi à Madeira há oito anos para ver a loja da
irmã do Maradona! Do Maradona, pergunto eu. Não será antes do Cristiano
Ronaldo? Ah, pois...isso, confirma-me! Sim, ainda só ia no primeiro vinho tinto da
viagem, mas como já eram 20.00, não sei o que estaria a montante.
- Isto do Brexit é uma chatice, diz-me. Uma grande confusão. Ninguém sabe
quando e como. Não se entendem. Eu percebo as pessoas quererem sair da UE.
- Ah, sim? E porque querem elas sair?
- Por causa dos romenos, diz-me ele com cara de constatação do óbvio.
- Dos romenos?
- Sim, sim. Antigamente o leiteiro deixava o leite à porta diariamente e
nós deixávamos o dinheiro da despesa semanal debaixo das garrafas vazias ao
sábado. Agora já não se pode fazer isso. “Eles” não querem trabalhar. À minha
cunhada já lhe assaltaram o carro. “Eles” pedem boleia a velhinhas que, tendo
pena deles, dão boleia e, a meio do caminho, pedem para sair e fazem uma
emboscada e levam os carros. A minha cunhada tinha um Mercedes novo, parou à
porta da garagem na rua, apareceram dois indivíduos com uma faca e levaram o
carro.
Nessa altura apetece-me perguntar se os indivíduos foram apanhados e
identificados como romenos, mas decido não fazê-lo.
Este discurso é de um inglês de origem indiana sobre romenos, mas pode ser
importado para qualquer outro país e contexto, com diferentes intervenientes
que a retórica é a mesma. Sinais dos tempos.
Chega a primeira refeição quente e o meu vizinho volta a pedir tinto. O
comissário de bordo diz que não tem merlot ali, que tem de ir buscar, ao que o
homem lhe responde que não vale a pena e que pode deixar o que tem. Abre o
vinho, prova-o e volta a chamar o comissário de bordo.
- Este não presta. Pode trazer-me o merlot?
- Com certeza. Posso levar esta garrafa?
- Sim, sim. Só um momento, diz - enquanto despeja o resto do vinho no seu
copo, entregando a garrafa vazia do vinho que não prestava ao comissário. Pode
não prestar, mas não se pode desaproveitar!!!
Depois da refeição, decido ouvir o audiolivro, acto que durou 2 minutos.
Mas quem é que permite que pessoas com voz de cana rachada leiam para
audiolivros?!? Não há condições, pelo que decido apagar o livro todo, fazendo
pouco da minha cara de satisfaçãozinha prévia!
O entretenimento a bordo tem vários títulos, embora não assim tantos, pelo
que decido ver um filme leve e adequado ao espírito de férias: Mary – Queen of
the Scots.
A meio tento dormir um pouco, mas a tentativa revela-se infrutífera. Atrás
de mim um outro indivíduo dorme, não parando de me massajar a lombar com os
seus joelhos (será que faz domicílios?), o chão onde estou cede um pouco sempre
que alguém passa no corredor (a sério!) e o meu vizinho tem de ir reciclar o vinho
tinto, pelo que decido deixar-me de mariquices e aceitar o vôo de 9h30 e o
jet-lag de oito horas como um homenzinho, permanecendo acordado a viagem toda!
Como temos vento muito forte de cauda até à Gronelândia, a viagem durará
somente nove horas. Começo a achar estranho faltarem duas horas para a
aterragem e não ser servida a segunda refeição quente. Depois uma hora e meia e
eis que faltando 1h15min para a aterragem servem uma meia sandes com um doce.
Escusado será dizer que o meu companheiro de viagem voltou a pedir merlot e eu
teria ficado com fome, não tivesse pedido uma segunda meia sandes!
Em breve estaria em solo canadiano, na expectativa de ver ursos. Mal sabia
eu que não teria de esperar muito para isso...
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