Depois da experiência tremenda dos sete lagos, dirigimo-nos para a fronteira. A noite já caiu e não sei bem o que esperar desta fronteira, efectivamente.
O preço a pagar por tantas
paragens é alto: Sarazm, património mundial da UNESCO datada de 1500 A.C., não
poderá ser visitada e, mesmo a chegada a Samarcanda, será feita bem mais tarde
do que o esperado.
Com estes pensamentos chego à
fronteira com o Uzbequistão. Como devem compreender, não foi possível tirar
fotos na fronteira por questões de segurança.
O Alishir está em jejum por causa
do Ramadão. Até às 19.05 não pode levar nada à boca e nós andámos todo o dia em
viagem por sítios cheios de pó, secos, áridos, quentes. Mal o relógio marca
19.05 ele leva a garrafa de água à boca exasperado.
Vários camiões encontram-se
parados à beira da estrada. Perante eles um portão de ferro fechado. Fechado?
Mas esta fronteira não é suposto estar aberta 24h por dia?
Dois miúdos (jovens adultos)
fardados encontram-se encostados à casota. Dirigimo-nos a eles e dizemos que
vimos atravessar a fronteira a pé. O Alishir e o seu jipe ficarão no
Tajiquistão, apanhando-me depois noutra fronteira a norte quando regressar, após
alguns dias, de Tasquente, capital do Uzbequistão.
- Agora não dá para atravessar.
Estão a jantar.
Imediatamente, lembro-me da
história do Raúl Solnado que tinha chegado à guerra logo pela manhãzinha, mas
que tinha dado com os portões da guerra fechados, pois só começava às nove.
Tento não me rir…creio que o cansaço ajudou em tal tarefa!
O Sr. Sadullo, responsável pela
empresa que me está a guiar por estas terras, diz aos miúdos: - Isso não pode
ser. Este senhor veio da Europa para entrar no Uzbequistão e não vai ficar aqui
a aguardar de pé enquanto jantam.
Os miúdos falam algo pelo rádio,
vindo seguidamente a resposta: 10 minutos e alguém estará aqui, dizem.
Penso para mim que não sei o que
seria preferível: esperar uma hora ou ter um oficial de fronteira irritado por
ter sido interrompido no seu jantar. Especialmente se ele estiver a jejuar. Bem,
será o que for.
Passados nem dez minutos, chega.
Relativamente novo, dá-me instruções para passar o portão de ferro que os
miúdos abrem.
Pede-me o passaporte num inglês
correcto e diz: Ah, Portugali…pausa de três segundos e depois…Cristiano
Rounaldo!!! Sim, por aqui dizem à inglesa: Rounaldo!
Efectivamente, sempre que me
perguntam de onde sou, quase invariavelmente a reacção é a mesma, ao ponto de
eu já fazer uma contagem decrescente sempre que dizia que era de Portugal: 3,
2, 1…Cristiano Rounaldo!!!
E invariavelmente segue-se sempre
um enorme sorriso. Se dúvidas havia da importância do futebol no mundo enquanto
meio de contacto entre povos, este e outros exemplos creio que são claros a
desfazê-los.
O oficial de fronteira do
Tajiquistão não é excepção. Coloca um grande sorriso (sim, por estas bandas
máscaras é coisa que só se vêem em clínicas e afins) e diz-me: sou grande fã da
vossa selecção nacional, espero que ganhem agora no Catar no campeonato do
mundo.
É de noite, estou na fronteira
entre o Tajiquistão e o Uzbequistão, com algum receio do que poderia ser este
atravessar da fronteira perante as circunstâncias e oiço estas palavras. Confesso
que fiquei estupefacto e sensibilizado.
- Será difícil, digo eu, mas
tentaremos certamente.
- Sim, é difícil, mas têm muitos
bons jogadores, começando a citar alguns (Bernardo Silva, etc). Seguidamente
fala das equipas que nos calharam no sorteio e refere que já tínhamos jogado
com Uruguai e Gana no campeonato anterior. Em resumo, o homem sabia mais da nossa
selecção do que eu!
- Pode sorrir para a câmara por
favor. Tem o cartão de imigração?
Tive de preencher este documento
ao entrar no Tajiquistão e agora ele pede-me para ficar confirmar a
conformidade e ficar com ele.
Volta a sorrir, deseja-me uma boa
estadia no Uzbequistão e diz-me que posso avançar para o controlo de raio-x da
bagagem.
O Sr. Sadullo e o Alishir tinham
ficado atrás do portão e despedem-se.
A passagem pelo raio-x faz-se sem
problemas e entro na zona de ninguém, entre controlos fronteiriços.
É de noite e o silêncio impera
somente quebrado pelas rodas da minha mala no alcatrão. Páro para absorver o
momento. Quando foi a última vez que estive na zona de ninguém a pé? De malas
atrás? Creio que nunca. E provavelmente não voltarei a estar, não sei.
Apesar de todo o ambiente ser
amistoso até então, não é propriamente uma sensação tranquila a que me
percorre, pelo que decido avançar.
Chego ao controlo fronteiriço do
Uzbequistão, onde não estão a jantar.
- Passaporte.
- Aqui está.
- Ah, Portugali!
3, 2, 1…
- Cristiano Rounaldo!
- Sim, digo eu com um sorriso…Cristiano
Ronaldo!
O sorriso é devolvido e de
repente o formalismo acaba. Fala-se sobre a selecção portuguesa, sobre o
campeonato do mundo, até que chega o sargento por trás. Olha para o passaporte
e diz:
- PortugalI!
3, 2, 1…
- António Guterres!
Hein? Esta é que não estava à
espera! Por algum motivo o homem é sargento. Aguardo um pouco para perceber se
a menção do Secretário-Geral das NU é feita com agrado ou nem por isso, mas a
face do sargento não se mostra muito reveladora. Descubro posteriormente que o
António Guterres andou por aqui a plantar uma árvore. Certamente não foi só
isso que ele fez na sua visita, mas creio que perceberam.
Pedem-me o certificado digital
Covid-19, o qual já vinha “pronto” no telemóvel. Após mais uma carimbadela no
passaporte, segue-se um sorriso e o desejo de uma boa estadia no Uzbequistão.
Sempre que me perguntam o que venho fazer ao seu país e eu respondo turismo,
ficam agradados. Perguntam que cidades visitarei, indico quais e obtenho como
resposta:
- Boa escolha. Espero que goste!
Creio que a ideia de que alguém
gosta do país deles ao ponto de viajar de tão longe para o conhecer é um
elogio. Imagino também que não tenham muitos turistas a passar pela fronteira
em questão. Portugueses devem ser raros, pelo que me vão dizendo e pelas
reacções que vou obtendo.
Sigo para o controlo de raio-x de
entrada no Uzbequistão. O telemóvel desaparece dentro da máquina do raio-x, mas
depois de andar a passadeira para trás e para a frente, lá aparece vivo.
Chego então ao portão de entrada
no Uzbequistão. Pedem-me novamente o passaporte, mostro e entro no Uzbequistão.
A escuridão é total, luzes não existem.
Quatro taxistas perguntam o
óbvio: se preciso de um táxi. Já alertado para o preço que seria justo,
preparo-me para pagar o dobro. Inicialmente pedem-me o triplo. Fingem regatear
entre eles, mas é-me dito que eles têm tudo combinado e, se algum deles, pedir
menos do que o combinado, pode ser espancado pelos outros. É tarde, estou
cansado e quero ir para o hotel em Samarcanda. Acabo por pagar cerca de 20%
acima do valor justo.
Quarenta minutos de viagem e
descubro a primeira das “curiosidades” locais. Os taxistas não sabem a
localização de nada. Os passageiros é que têm de indicar. Escusado será dizer
que, depois de chegarmos a Samarcanda, jogámos o jogo do “Mas onde é que raio
fica este hotel?”.
Confesso que, noutras
circunstâncias, poderia ser um jogo giro, mas estou cansado e com fome. Uso o Google
maps e vamos dar a uma rua esconsa cheia de material de obras.
Liga-se para o hotel e o
recepcionista dá umas instruções. O hotel está em obras e a entrada faz-se por
outra porta afinal.
Simpaticamente, o recepcionista
vem à rua e ajuda com a bagagem.
Feito o check-in, indaga-se se há
algo para comer. Sim, ele tem uma espécie de ementa de um take-away.
Uma espécie de kebab com salada…estava
bom, mas a fome ainda o fez melhor!
Caio literalmente na cama. O dia
estava terminado, mas as memórias deste dia serão eternas!
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