quinta-feira, 21 de abril de 2022

Dia 7 - Dos Sete Lagos a Samarcanda - passagem da fronteira Sarazm-Jartepa - 100km

 Depois da experiência tremenda dos sete lagos, dirigimo-nos para a fronteira. A noite já caiu e não sei bem o que esperar desta fronteira, efectivamente.

O preço a pagar por tantas paragens é alto: Sarazm, património mundial da UNESCO datada de 1500 A.C., não poderá ser visitada e, mesmo a chegada a Samarcanda, será feita bem mais tarde do que o esperado.

Com estes pensamentos chego à fronteira com o Uzbequistão. Como devem compreender, não foi possível tirar fotos na fronteira por questões de segurança.

O Alishir está em jejum por causa do Ramadão. Até às 19.05 não pode levar nada à boca e nós andámos todo o dia em viagem por sítios cheios de pó, secos, áridos, quentes. Mal o relógio marca 19.05 ele leva a garrafa de água à boca exasperado.

Vários camiões encontram-se parados à beira da estrada. Perante eles um portão de ferro fechado. Fechado? Mas esta fronteira não é suposto estar aberta 24h por dia?

Dois miúdos (jovens adultos) fardados encontram-se encostados à casota. Dirigimo-nos a eles e dizemos que vimos atravessar a fronteira a pé. O Alishir e o seu jipe ficarão no Tajiquistão, apanhando-me depois noutra fronteira a norte quando regressar, após alguns dias, de Tasquente, capital do Uzbequistão.

- Agora não dá para atravessar. Estão a jantar.

Imediatamente, lembro-me da história do Raúl Solnado que tinha chegado à guerra logo pela manhãzinha, mas que tinha dado com os portões da guerra fechados, pois só começava às nove. Tento não me rir…creio que o cansaço ajudou em tal tarefa!

O Sr. Sadullo, responsável pela empresa que me está a guiar por estas terras, diz aos miúdos: - Isso não pode ser. Este senhor veio da Europa para entrar no Uzbequistão e não vai ficar aqui a aguardar de pé enquanto jantam.

Os miúdos falam algo pelo rádio, vindo seguidamente a resposta: 10 minutos e alguém estará aqui, dizem.

Penso para mim que não sei o que seria preferível: esperar uma hora ou ter um oficial de fronteira irritado por ter sido interrompido no seu jantar. Especialmente se ele estiver a jejuar. Bem, será o que for.

Passados nem dez minutos, chega. Relativamente novo, dá-me instruções para passar o portão de ferro que os miúdos abrem.

Pede-me o passaporte num inglês correcto e diz: Ah, Portugali…pausa de três segundos e depois…Cristiano Rounaldo!!! Sim, por aqui dizem à inglesa: Rounaldo!

Efectivamente, sempre que me perguntam de onde sou, quase invariavelmente a reacção é a mesma, ao ponto de eu já fazer uma contagem decrescente sempre que dizia que era de Portugal: 3, 2, 1…Cristiano Rounaldo!!!

E invariavelmente segue-se sempre um enorme sorriso. Se dúvidas havia da importância do futebol no mundo enquanto meio de contacto entre povos, este e outros exemplos creio que são claros a desfazê-los.

O oficial de fronteira do Tajiquistão não é excepção. Coloca um grande sorriso (sim, por estas bandas máscaras é coisa que só se vêem em clínicas e afins) e diz-me: sou grande fã da vossa selecção nacional, espero que ganhem agora no Catar no campeonato do mundo.

É de noite, estou na fronteira entre o Tajiquistão e o Uzbequistão, com algum receio do que poderia ser este atravessar da fronteira perante as circunstâncias e oiço estas palavras. Confesso que fiquei estupefacto e sensibilizado.

- Será difícil, digo eu, mas tentaremos certamente.

- Sim, é difícil, mas têm muitos bons jogadores, começando a citar alguns (Bernardo Silva, etc). Seguidamente fala das equipas que nos calharam no sorteio e refere que já tínhamos jogado com Uruguai e Gana no campeonato anterior. Em resumo, o homem sabia mais da nossa selecção do que eu!

- Pode sorrir para a câmara por favor. Tem o cartão de imigração?

Tive de preencher este documento ao entrar no Tajiquistão e agora ele pede-me para ficar confirmar a conformidade e ficar com ele.

Volta a sorrir, deseja-me uma boa estadia no Uzbequistão e diz-me que posso avançar para o controlo de raio-x da bagagem.

O Sr. Sadullo e o Alishir tinham ficado atrás do portão e despedem-se.

A passagem pelo raio-x faz-se sem problemas e entro na zona de ninguém, entre controlos fronteiriços.

É de noite e o silêncio impera somente quebrado pelas rodas da minha mala no alcatrão. Páro para absorver o momento. Quando foi a última vez que estive na zona de ninguém a pé? De malas atrás? Creio que nunca. E provavelmente não voltarei a estar, não sei.

Apesar de todo o ambiente ser amistoso até então, não é propriamente uma sensação tranquila a que me percorre, pelo que decido avançar.

Chego ao controlo fronteiriço do Uzbequistão, onde não estão a jantar.

- Passaporte.

- Aqui está.

- Ah, Portugali!

3, 2, 1…

- Cristiano Rounaldo!

- Sim, digo eu com um sorriso…Cristiano Ronaldo!

O sorriso é devolvido e de repente o formalismo acaba. Fala-se sobre a selecção portuguesa, sobre o campeonato do mundo, até que chega o sargento por trás. Olha para o passaporte e diz:

- PortugalI!

3, 2, 1…

- António Guterres!

Hein? Esta é que não estava à espera! Por algum motivo o homem é sargento. Aguardo um pouco para perceber se a menção do Secretário-Geral das NU é feita com agrado ou nem por isso, mas a face do sargento não se mostra muito reveladora. Descubro posteriormente que o António Guterres andou por aqui a plantar uma árvore. Certamente não foi só isso que ele fez na sua visita, mas creio que perceberam.

Pedem-me o certificado digital Covid-19, o qual já vinha “pronto” no telemóvel. Após mais uma carimbadela no passaporte, segue-se um sorriso e o desejo de uma boa estadia no Uzbequistão. Sempre que me perguntam o que venho fazer ao seu país e eu respondo turismo, ficam agradados. Perguntam que cidades visitarei, indico quais e obtenho como resposta:

- Boa escolha. Espero que goste!

Creio que a ideia de que alguém gosta do país deles ao ponto de viajar de tão longe para o conhecer é um elogio. Imagino também que não tenham muitos turistas a passar pela fronteira em questão. Portugueses devem ser raros, pelo que me vão dizendo e pelas reacções que vou obtendo.

Sigo para o controlo de raio-x de entrada no Uzbequistão. O telemóvel desaparece dentro da máquina do raio-x, mas depois de andar a passadeira para trás e para a frente, lá aparece vivo.

Chego então ao portão de entrada no Uzbequistão. Pedem-me novamente o passaporte, mostro e entro no Uzbequistão. A escuridão é total, luzes não existem.

Quatro taxistas perguntam o óbvio: se preciso de um táxi. Já alertado para o preço que seria justo, preparo-me para pagar o dobro. Inicialmente pedem-me o triplo. Fingem regatear entre eles, mas é-me dito que eles têm tudo combinado e, se algum deles, pedir menos do que o combinado, pode ser espancado pelos outros. É tarde, estou cansado e quero ir para o hotel em Samarcanda. Acabo por pagar cerca de 20% acima do valor justo.

Quarenta minutos de viagem e descubro a primeira das “curiosidades” locais. Os taxistas não sabem a localização de nada. Os passageiros é que têm de indicar. Escusado será dizer que, depois de chegarmos a Samarcanda, jogámos o jogo do “Mas onde é que raio fica este hotel?”.

Confesso que, noutras circunstâncias, poderia ser um jogo giro, mas estou cansado e com fome. Uso o Google maps e vamos dar a uma rua esconsa cheia de material de obras.

Liga-se para o hotel e o recepcionista dá umas instruções. O hotel está em obras e a entrada faz-se por outra porta afinal.

Simpaticamente, o recepcionista vem à rua e ajuda com a bagagem.

Feito o check-in, indaga-se se há algo para comer. Sim, ele tem uma espécie de ementa de um take-away.

Uma espécie de kebab com salada…estava bom, mas a fome ainda o fez melhor!


Caio literalmente na cama. O dia estava terminado, mas as memórias deste dia serão eternas!

 

 

 

 

 

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